24.05.1928 | Romance policial: do delírio alucinatório crônico típico ao delírio de imaginação

[ Roman policier. Du délire type hallucinatoire chronique au délire d’imagination ]

Comunicação realizada por Joseph Lévy-Valensi [1879-1943], Paul Meignant [1897-1960] e Jacques Lacan [1901-1981], junto à Sociedade de Psiquiatria de Paris, na sessão do dia 24 de maio de 1928. O paciente apresentado durante a exposição — um homem de 40 anos manifestando um delírio com tema policial — fora provavelmente observado no Hospital Sainte-Anne. Seu primeiro prontuário, onde consta o diagnóstico de psicose alucinatória crônica, fora assinado por Gaëtan Gatian de Clérambault [1872-1934], então chefe da Enfermaria Especial do Comando de Polícia de Paris, ligada a esse hospital, onde Lacan atuou nos anos de 1928-29. Um resumo desta comunicação, escrito em primeira pessoa, será publicado, ainda em 1928, na revista L’Encéphale, órgão responsável pela divulgação dos relatórios oficiais das sessões. Um relato em terceira pessoa, da autoria de André Ceillier [1887-1954], será publicado nesse mesmo ano em duas outras revistas médicas francesas, a Revue Neurologique e os Annales Médico-Psychologiques — em ambas as publicações, ligeiramente diferentes em relação à primeira, consta a data alternativa de 26 de abril de 1928.

L’Encéphale, 1928, n. 5, pp. 550-551.

Revue Neurologique, 1928, vol. 1, pp. 738-739.

Annales Médico-Psychologiques, 1928, vol. 1, pp. 474-476.

Apresentamos um doente de 40 anos que, há 13 meses, tem um delírio com tema policial: de Beaucaire[1] ele assistia a repetidas cenas de roubos que se passavam em Paris; entrava em comunicação de pensamentos com os agentes parisienses e a guarda de Beaucaire; fazia com que encalçassem os malfeitores. Por fim, viaja a Paris para completar suas declarações à polícia e é internado depois de um procedimento na delegacia. Sem insistir nos detalhes desse romance delirante bastante rico, diremos algumas palavras quanto ao seu substratum.

Quando de sua internação, o doente foi laudado: psicose alucinatória crônica. E, de fato, a presença de alucinações visuais, auditivas, até genitais, de eco dos atos e do pensamento parecia evidente. Contudo, dois fatos impressionavam desde o princípio: de um lado, o caráter sobretudo noturno ou hipnagógico[2] dos fenômenos, lembrando o delírio de sonho a sonho outrora pontuado por Klippel,[3] a convicção delirante persistindo, contudo, por todo o dia; de outro, a existência de um complemento imaginativo importante: “mentismo[4] percebido como exógeno, invenções visuais… Visões hipnagógicas e lúcidas, animadas e combinadas, quiçá por vezes evocáveis (?)” (laudo inicial pelo Sr. de Clérambault[5]).

Dois meses mais tarde o doente se apresenta como um imaginativo. Nenhuma interpretação. Alucinações extremamente reduzidas, quando não completamente desaparecidas (os fenômenos de eco do pensamento e dos atos parecem ter desaparecido ultimamente). Romance imaginativo extremamente rico, crescendo, por assim dizer, em avalanches; sugestibilidade e possibilidade de provocar, nos relatos já feitos, um ou outro acréscimo ao qual a convicção imediata se atém. Ideias megalomaníacas cada vez mais fantásticas.

O pouco de informação obtida sobre os antecedentes do doente dificultam um juízo sobre a sua constituição mental anterior. Parece, todavia, que o doente sempre foi um imaginativo ou um mitômano (poeta, instável…). Por outro lado, no início da estada do doente no manicômio, os estigmas de abuso de álcool eram nítidos. A sífilis é possível (reações biológicas negativas, mas irregularidade pupilar e leucoplasia[6]). Sem poder afirmá-lo, acreditamos que se produziu um surto onírico (tóxico ou infeccioso) em alguém que já estava predisposto. Findo o surto, as características propriamente oníricas do delírio e suas alucinações atenuaram-se e tendem a desaparecer. Mas a tendência original mitomaníaca recebeu um grande impulso. A afecção tende a assumir o aspecto de um delírio de imaginação cada vez mais puro, e pode assim se enquadrar entre os “delírios pós-oníricos sistematizados crônicos por desenvolvimento de tendências originais”, de Gilbert Ballet[7] (Bulletin médical, 8 de novembro de 1911, n. 87, p. 959).


[1] Comuna francesa localizada na Occitânia, a 7h de Paris. (N. do T.)
[2] Relativo ao cair do sono. (N. do T.)
[3] François Maurice Klippel [1858-1942], médico neurologista e psiquiatra francês, foi aluno de Joseph Babinski [1857-1932]. Fundou, em 1933, o periódico Hippocrate: revue d’humanisme médical, em colaboração com Maxime Laignel-Lavastine [1875-1953]. Seu nome ficaria associado à descrição clínica de malformações congênitas raras, como a Síndrome de Klippel-Feil e a Síndrome de Klippel-Trenaunay. A menção feita nesta comunicação diz respeito ao artigo intitulado “Délire systématisé de rêve à rêve” [Delírio sistematizado de sonho a sonho], publicado na Revue de psychiatrie em abril de 1901 e escrito em coautoria com o neurologista Paul Trenaunay [1875-1938]. (N. do T.)
[4] De acordo com o alienista Philippe Chaslin [1857-1923], trata-se de um fluxo rápido e incontrolável de pensamentos e imagens que o sujeito não consegue interromper, tipicamente acompanhado de ansiedade e ocorrendo geralmente quando se está para dormir, causando insônia. (N. do T.)
[5] Gaëtan Gatian de Clérambault [1872-1934] é considerado, por muitos, o último e mais brilhante dos clássicos. Obteve, em 1905, o cargo de médico adjunto da Enfermaria Especial do Comando de Polícia, onde já era interno de Paul-Émile Garnier [1848-1905]. Com a morte de Ernest Dupré [1862-1921], que havia sido seu professor, torna-se médico-chefe da instituição. Jacques Lacan [1901-1981] o considerava seu “único mestre em psiquiatria”. Cf. C. M. Ramos Ferreira; J. Santiago [2014] Apresentação de pacientes: Clérambault, mestre de Lacan. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. 17, n.2. São Paulo, junho de 2014. Disponível em: <dx.doi.org/10.1590/1984-0381v17n2a05>. (N. do T.)
[6] Alteração da mucosa da boca, da língua ou das mucosas genitais (mais raro) em uma placa branca e dura por efeito de irritações diversas. (N. do T.)
[7] Louis Gilbert Siméon Ballet [1853-1916] foi um neurologista e alienista francês. Professor de história da medicina da Faculdade de Medicina de Paris (1907), assumiu posteriormente a cátedra de Clínica das Doenças Mentais e do Encéfalo em Sainte-Anne (1909). Tornou-se membro titular da Academia de Medicina e da Academia de Ciências, tendo presidido a Sociedade Francesa de História da Medicina nos anos de 1909-1910. Primeiro chefe clínico de Jean Martin Charcot [1825-1893], quando da criação da cátedra de Clínica de Doenças Nervosas na Salpêtrière (1882), Ballet torna-se médico hospitalar em Paris e funda, no ano de 1904, aquele que seria o primeiro serviço de psiquiatria hospitalar universitário em um hospital parisiense da Assistência Pública — o “serviço dos delirantes do Hôtel-Dieu”. (N. do T.)

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Sobre o Autor

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Linguista e tradutor, exerce a psicanálise na cidade de São Paulo. Bacharel e doutor em linguística pelo IEL-Unicamp, realizou pós-doutoramento no Depto. de Ciência da Literatura da UFRJ. Atuou como professor-associado junto ao Depto. de Língua Romena e Linguística Geral da Universidade Alexandru Ioan Cuza (Iaşi, 2009) e foi tradutor residente do Instituto Cultural Romeno (Bucareste, 2013). Organiza a coletânea “A psicanálise e os lestes” (Ed. Annablume) e é um dos editores da Revista Lacuna (www.revistalacuna.com).