13.07.1933 | Um caso de perversão infantil por encefalite epidêmica precoce diagnosticada por uma síndrome motora leve

[ Un cas de perversion infantile par encéphalite épidémique précoce diagnostiquée par un syndrome moteur fruste ] 

Comunicação realizada por Georges Heuyer [1884-1977] e Jacques Lacan [1901-1981], junto à Sociedade Médico-Psicológica de Paris, em 13 de julho de 1933. Nela apresenta-se o caso clínico de uma criança de 14 anos que apresenta distúrbios do caráter e leves sintomas motores, que são respectivamente vinculados pelos autores à encefalite epidêmica e às perversões instintivas essenciais da criança. 

 

Annales Médico-Psychologiques, 1933, vol. 14, n. 2, pp. 221-223

 

L., 14 anos. – Sexo masculino. Nenhuma anomalia nos estágios do desenvolvimento somático e mental. Nos antecedentes familiares, nada além de um aborto espontâneo da mãe.

Atualmente, nível mental nitidamente superior nos testes de Terman.[1] QI = I. A criança, entretanto, não conseguiu concluir o primário por conta de um atraso escolar causado pelas sucessivas expulsões que puseram fim, com prazos sempre bastante curtos, a cada uma de suas várias experiências escolares. Após diversas tentativas infrutíferas em várias escolas municipais, tampouco conseguiu ser mantida em estabelecimentos de reeducação especializados. Uma tentativa recente de alocação como jovem aprendiz num ateliê de ourivesaria foi igualmente um fracasso.

As manifestações que impossibilitam sua adaptação surgiram entre os seis e sete anos de idade. Desde então não mudaram essencialmente de frequência nem de caráter.

Trata-se de impulsos perversos — malignos, no mais das vezes — frequentemente agressivos e perigosos. Eles ocorrem de forma muito brusca, na maioria das vezes de forma muito inesperada. Não há amnésia; a criança não manifesta nenhum remorso a seu respeito. É difícil atualmente, após diversos exames médicos, apreciar no interrogatório o grau de seu caráter coercitivo na consciência da criança.

Uma das mais chocantes dentre as primeiras manifestações foi que a criança se exibiu despida em plena sala de aula, aos sete anos de idade. Levaram-na então para se consultar na Clínica Psiquiátrica de Ste-Anne,[2] onde o exame neurológico e humoral (punção lombar praticada) foi declarado negativo.

Desde então pode-se notar uma série ininterrupta de iniciativas malignas, das quais as mais graves e as mais brutais são também as mais impulsivas e as menos complexas. Essas brutalidades exercem-se, no mais das vezes, com colegas de escola: pancadas, crueldades, travessuras perversas. Muito recentemente teve de deixar um internato profissional para crianças difíceis por ter ferido gravemente, com uma garfada, a mão de um dos seus vizinhos de refeitório. Voltando à casa dos pais, neles causa os maiores receios por conta das duas irmãs — uma mais velha, outra mais nova ­—, nas quais ele pratica as mesmas sevícias.

Cumpre notar igualmente um roubo impulsivo que pôs fim à recente tentativa de aprendizado — para a qual a criança se mostrou, aliás, pouco apta manualmente.

Tirante uma ligeira lentidão psíquica, o contato com a criança (222) mostra-se, no interrogatório, normal. Não se tem a impressão de tratar-se de um esquizoide, mas sim de um epileptoide. Apenas a sua reação, quando se evocam os seus malfeitos, permanece enigmática por sua atonia.

Os pais e os educadores, tendo esgotado todos os recursos, enviam a criança para se consultar conosco há três meses.

Constatamos uma fácies um pouco paralisada, um balanço normal dos membros superiores durante a marcha, sem sinal de hipertonia manifesta, sem o dito sinal da roda dentada,[3] sem distúrbios da refletividade tendinosa.

Mas, em contrapartida, uma síndrome motora, certamente leve, mas para cuja nitidez desejamos chamar a atenção: um tremor palpebral marcado no movimento sustentado do fechamento das pálpebras, um tremor fibrilar da língua, fibrilações concomitantes do orbicular[4] dos lábios. A escrita, por outro lado, mostra um tremor muito brando; certamente de uma grande tenuidade, mas que é o suficiente, à primeira vista, para classificá-la nas escritas ditas “neurológicas”.

Deve-se observar, ademais, que os testes de destreza manual cotejados, dos quais nos servimos em nosso serviço para a orientação profissional das crianças, deram, aplicados ao nosso sujeito, resultados de uma anomalia absolutamente ímpar. Esses testes consistem em rosquear porcas; colocar linhas em agulhas, em miçangas; ajustar cavilhas e compreende um trabalho de triagem e manipulação de objetos que permite julgar a motricidade da criança, e dela dissociar os fatores primários dos diversos níveis de organização a que está suscetível (atenção, ritmo, educabilidade, discernimento, organização). O trabalho é observado, cronometrado e classificado em quatro quartis escalonados pelo experimento. Em nossa criança, que não apresenta nenhum sinal de debilidade motora, todos os resultados, sem exceção, situam-se no limite inferior do último quartil. Esses resultados revelam-se à observação como sendo devidos, antes de mais nada, à extrema lentidão dos movimentos. Em seguida vêm erros frequentes de atenção; quedas frequentes de objetos; certa puerilidade do comportamento, que se marca numa má observação do trabalho a fazer. O núcleo propulsor dessa reação é, portanto, uma bradicinesia[5] que vem se somar aos sinais já notados.

Uma paresia da convergência ocular vem assinalar o alcance de toda essa síndrome e nos permite dar o verdadeiro valor a um antecedente infeccioso precoce, ocorrido aos dois anos de idade, e que se manifestou durante sete ou oito meses através de uma sonolência permanente da qual as solicitações externas tiravam o jovem sujeito apenas de uma forma totalmente momentânea. Períodos de sonolência foram notados diversas vezes desde então. Recentemente, também, a criança vinha dormindo no trabalho de aprendiz de ourives.

Na ausência de todo e qualquer sinal neurológico ou humoral mais preciso (B.-W.,[6] no sangue, negativo; P.-L., B.-W. negativo.[7] Alb.:[8] 0,20. (223) Açúcar: 0,70. Um elemento por mm3), essa síndrome motora leve e esses antecedentes nos permitem, conforme acreditamos, afirmar a patogenia de distúrbios do caráter, e ligá-los aos que se descrevem classicamente na neuraxite[9] epidêmica.

Esse caso nos pareceu interessante de comunicar por incitar a pesquisa dos sintomas mais leves da organicidade, cada vez que nos encontramos na presença dessa classe de distúrbios, definida de forma puramente residual e certamente heterogênea, chamados de perversões instintivas essenciais da criança.


[1] Lewis Madison Terman [1877- 1956], psicólogo norte-americano, desenvolveu sua atividade profissional na Faculdade de Educação da Universidade de Stanford, onde começou a se interessar pelo estudo de crianças consideradas superdotadas. Lá realizou diversos trabalhos sobre testes e escalas de inteligência, até que em 1916 publicou uma versão revista do teste Binet-Simon — que então passou a se chamar “Escala Stanford-Binet”. (N. do T.)
[2] O Centro Hospitalar Sainte-Anne foi edificado num local com vocação assistencial desde o século XIII. Em seguida à Casa de Saúde de Margarida da Provença, esposa de Luís IX; e então, ao Sanitat Saint-Marcel, no século XV (destinado aos doentes por contágio), Ana de Áustria ordenou a construção, por volta de 1650, de um hospital que receberia o nome de Sainte-Anne [Sant’Ana]. Pouco utilizado num primeiro momento, o local foi transformado numa espécie de fazenda onde iam trabalhar os alienados do Hospital de Bicêtre, que ficava relativamente próximo. Em 1863, no entanto, Napoleão III decide criar ali um hospital psiquiátrico, designado por ele próprio como “asilo clínico”, uma vez que se destinaria a ser um local de tratamento, de pesquisa e de ensino. O manicômio  é inaugurado no primeiro dia do ano de 1867, e seu primeiro paciente dará entrada em 1º de maio. Em 1922, havia sido criado ali, por Édouard Toulouse [1865-1947], um centro de profilaxia mental: o primeiro serviço livre, isto é, no qual os doentes não ficam internados. (N. do T.)
[3] Sintoma neurológico extrapiramidal devido à hipertonia muscular e a consequente limitação dos movimentos passivos dos segmentos dos membros. Ocorre uma resistência que cede aos poucos, como que em pequenos trancos, o que remete aos movimentos de uma roda dentada. (N. do T.)
[4] Músculo da boca composto por fibras que circundam o orifício bucal. É responsável pelo fechamento dos lábios e pela protrusão que possibilita o assovio. (N. do T.)
[5] Lentificação dos movimentos voluntários presente em várias condições médicas que afetam o sistema nervoso central. (N. do T.)
[6] Levando os nomes de Jules Bordet [1870-1961] — Nobel de fisiologia e medicina em 1919, por sua descoberta do bacilo da coqueluche — e August Paul von Wassermann [1866-1925] — um bacteriologista alemão —, a reação Bordet-Wasserman trata-se de uma reação de hemólise (dissolução dos glóbulos vermelhos) que foi desenvolvida por Wassermann em 1906, não sem reconhecer a importância de achados anteriores realizados por outros cientistas, dentre eles Jules Bordet. Consistia essencialmente em pôr frente a frente o antígeno, um complemento e o soro suspeito de conter o anticorpo sifilítico, permitindo detectar precocemente um anticorpo não específico contra a sífilis (a anticardiolipina), garantindo a intervenção medicamentosa precoce. Cf. E. Gonçalvez (1926) Sobre a sero-reacção de Bordet-Wasserman. Porto: Enciclopédia portuguesa. Disponível em:  <repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/17673/2/221_2_FMP_TD_I_01_C.pdf>. (N. do T.)
[7] A reação de Bordet-Wassermann pode ser realizada tanto no sangue quanto no líquido cefalorraquidiano. Assim, P.-L., embora tenha sido grafado como abreviatura de nome próprio, possivelmente indique ponction lombaire [punção lombar]. (N. do T.)
[8] Albumina. (N. do T.)
[9] A neuraxite (ou encefalite) consiste na inflamação da neuraxe, o eixo cerebrospinal do sistema nervoso central.  (N. do T.)

01.06.1933 | O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranoicas da experiência

[ Le problème du style et la conception psychiatrique des formes paranoïaques de l’expérience ] 

Publicado no número inaugural da Revue Minotaure (Paris: Éditions Albert Skira) — que veio a público simultaneamente ao segundo volume, no dia 1º de junho de 1933 —, este artigo, escrito por Jacques Lacan [1901-1981], estava acompanhado, em sua edição, por trabalhos de Pierre Reverdy [1889-1960], Maurice Raynal [1884-1954], André Breton [1896-1966], Émile Tériade [1897-1983], René Crevel [1900-1935], Marcel Jean [1900-1993], André Masson [1896-1987], Max Raphaël [1889-1952], Pablo Picasso [1881-1973], Maurice Heine [1884-1940], Marquês de Sade [1740-1814], Paul Éluard [1895-1952], Salvador Dalí [1904-1989], Kurt Weill [1900-1950] e Michel Leiris [1901-1990]. Foi posteriormente reimpresso entre os “Premiers écrits sur la paranoïa” [Primeiros escritos sobre a paranoia]: compilado de textos que constará ao final da edição impressa da tese de doutorado em psiquiatria, concluída em 1932 por Lacan, sob a orientação de Gaëtan Gatian de Clérambault [1872-1934]: De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité [Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade].

 

Revue Minotaure, 1933, vol. 1, pp. 68-69.

De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité. Paris: Seuil, 1975, pp. 383-388.

D

entre todos os problemas da criação artística, o do estilo requer o mais imperiosamente, também para o próprio artista, acreditamos nós, uma solução teórica. Efetivamente, não deixa de ter importância a ideia de que se constitui conflito, revelado por conta do estilo, entre a criação realista fundamentada no conhecimento objetivo, de um lado; e, de outro, a potência superior de significação, a alta comunicabilidade emocional da criação dita “estilizada”. Segundo a natureza dessa ideia, efetivamente, o artista conceberá o estilo como fruto de uma escolha racional, de uma escolha ética, de uma escolha arbitrária; ou então, ainda, de uma necessidade enfrentada cuja espontaneidade se impõe contra todo e qualquer controle, ou mesmo que dela convém se libertar por uma ascese negativa. É escusado insistir na importância dessas concepções para o teórico.

Porém, parece-nos que o sentido que a pesquisa psiquiátrica tomou nos dias de hoje oferece dados novos para esses problemas. Mostramos o caráter bastante concreto desses dados em detalhadas análises realizadas com escritos de loucos. Gostaríamos aqui de indicar, em termos forçosamente mais abstratos, qual revolução teórica elas trazem para a antropologia.

A psicologia escolar, por ser a derradeira investida das ciências positivas — e, assim, ter surgido no apogeu da civilização burguesa que sustenta o corpo dessas ciências —, só podia ter uma confiança ingênua no pensamento mecanicista que havia provado o seu valor nas ciências físicas. Isso ao menos enquanto a ilusão de uma infalível investigação da natureza continua a recobrir a realidade da fabricação de uma segunda natureza, mais conforme às leis de equivalência fundamentais do espírito, a saber: a da máquina. De igual maneira, o progresso histórico dessa psicologia, se ele parte da crítica experimental das hipóstases do racionalismo religioso, desemboca nas mais recentes psicofísicas com abstrações funcionais, cuja realidade reduz-se cada vez mais rigorosamente à única medida do rendimento físico do trabalho humano. Efetivamente, nada nas condições artificiais do laboratório podia contradizer um desconhecimento tão sistemático da realidade do homem.

Devia ser papel dos psiquiatras, que essa realidade solicita de forma especialmente imperiosa, encontrar tanto os efeitos da ordem ética nas transferências criadoras do desejo ou da libido quanto as determinações estruturais da ordem numenal[1] nas formas primárias da experiência vivida: isto é, reconhecer a primordialidade dinâmica e a originalidade dessa experiência (Erlebnis) em relação a toda e qualquer objetivação do acontecimento (Geschehnis).

Estaríamos, no entanto, na presença da mais surpreendente exceção às leis próprias ao desenvolvimento de toda superestrutura ideológica caso esses fatos tivessem sido reconhecidos tão logo encontrados, afirmados tão logo reconhecidos. A antropologia que eles implicam torna demasiado relativos os postulados da física e da moral racionalizantes. Porém, esses postulados estão suficientemente integrados à linguagem corrente para que o médico — que, dentre todos os tipos de intelectuais, é o mais constantemente marcado por um ligeiro atraso dialético — não tenha acreditado ingenuamente encontrá-los nos próprios fatos. Ademais, cumpre não ignorar que o interesse pelos doentes mentais nasceu historicamente de necessidades de origem jurídica. Essas necessidades surgiram quando da instauração formulada, na base do Direito, da concepção filosófica burguesa do homem como dotado de uma liberdade moral absoluta e da responsabilidade como própria ao indivíduo (vínculo dos Direitos Humanos[2] com as pesquisas inaugurais de Pinel[3] e Esquirol[4]). Com isso, a questão capital que se colocou praticamente à ciência dos psiquiatras foi aquela, artificial, de um tudo-ou-nada da decadência mental (Art. 64 do Código Penal).[5]

Era natural, portanto, que os psiquiatras tomassem emprestado a explicação dos distúrbios mentais primeiro das análises da escola e do cômodo esquema de um déficit quantitativo (insuficiência ou desequilíbrio) de uma função de relação com o mundo — função e mundo procedendo de uma mesma abstração e racionalização. Nisso toda uma ordem de fatos, que corresponde ao quadro clínico das demências, deixava-se resolver bastante bem, aliás.

É o triunfo do gênio intuitivo próprio à observação que um Kraepelin,[6] ainda que todo engajado nesses precedentes teóricos, tenha podido classificar, com um rigor ao qual pouco se acrescentou, as espécies clínicas cujo enigma devia, através de aproximações frequentemente ilegítimas (das quais o público retém apenas palavras em torno das quais se pode congregar: esquizofrenia etc.), engendrar o relativismo numenal sem paralelos — pontos de vista ditos “fenomenológicos” da psiquiatria contemporânea.

Essas espécies clínicas não são outras que não as psicoses propriamente ditas (as verdadeiras “loucuras”, no vulgo). Porém, os trabalhos de inspiração fenomenológica sobre esses estados mentais (por exemplo, o bastante recente de Ludwig Binswanger[7] sobre o estado chamado de (69) “fuga de ideias”,[8] que se observa na psicose maníaco-depressiva; ou o meu próprio trabalho sobre “a psicose paranoica em suas relações com a personalidade”[9]) não destacam a reação local — e, no mais das vezes, notável somente por alguma discordância pragmática —, que se pode individualizar aí como distúrbio mental, da totalidade da experiência vivida do doente que eles tentam definir em sua originalidade. Essa experiência só pode ser compreendida no limite de um esforço de consentimento; ela pode ser validamente descrita como uma estrutura coerente de uma apreensão numenal imediata de si mesmo e do mundo. Apenas um método analítico, com um rigor muito grande, pode permitir uma descrição como essa; toda objetivação é, com efeito, eminentemente precária numa ordem fenomenal que se manifeste como anterior à objetivação racionalizante. As formas exploradas dessas estruturas permitem concebê-las como diferenciadas entre si por certos hiatos[10] que permitem tipificá-las.

Ora, algumas dessas formas da experiência vivida, dita “mórbida”, apresentam-se como particularmente fecundas em modos de expressão simbólicos, que, por serem irracionais em seus fundamentos, nem por isso são menos providos de uma significação intencional eminente e de uma comunicabilidade tensional muito elevada. Elas se encontram em psicoses que nós estudamos particularmente, conservando-lhes o rótulo antigo e etimologicamente satisfatório de “paranoia”.[11]

Essas psicoses manifestam-se clinicamente por um delírio de perseguição, uma evolução crônica específica e reações criminosas particulares. Na falta de poder detectar qualquer distúrbio no manejo do aparelho lógico e dos símbolos espaço-temporo-causais, os autores da linhagem clássica não temem relacionar paradoxalmente todos esses distúrbios a uma hipertrofia da função raciocinante.

Para nós, pudemos mostrar não somente que o mundo próprio a esses sujeitos é transformado muito mais em sua percepção do que em sua interpretação, mas que essa percepção mesma não é comparável com a intuição dos objetos, própria ao civilizado da média normal. Por um lado, efetivamente, o campo da percepção é marcado nesses sujeitos por um caráter imanente e iminente de “significação pessoal” (sintoma quer dizer interpretação), e esse caráter é exclusivo dessa neutralidade afetiva do objeto que, ao menos virtualmente, o conhecimento racional exige. Por outro, a alteração, neles notável, das intuições espaçotemporais modifica o alcance da convicção de realidade (ilusões da lembrança, crenças delirantes).

Esses traços fundamentais da experiência vivida paranoica excluem-na da deliberação ético-racional e de toda e qualquer liberdade fenomenologicamente definível na criação imaginativa.

Ora, estudamos metodicamente as expressões simbólicas que esses sujeitos dão de suas experiências: por um lado, os temas ideicos e os atos significativos dos seus delírios; por outro, as produções plásticas e poéticas, em que são muito fecundos.

Pudemos mostrar:

1.– A significação eminentemente humana desses símbolos, que só tem análogo, quanto aos temas delirantes, nas criações míticas do folclore; e, quanto aos sentimentos animadores das fantasias, frequentemente não é sem paralelo com a inspiração dos mais grandiosos artistas (sentimentos da natureza, sentimento idílico e utópico da humanidade, sentimento de reivindicação antissocial).

2.– Caracterizamos nos símbolos uma tendência fundamental que designamos com o termo “identificação iterativa do objeto”: o delírio revela-se, com efeito, muito fecundo em fantasias de repetição cíclica, de multiplicação ubiquista, de infindáveis retornos periódicos dos mesmos acontecimentos; em duplicatas e triplicatas dos mesmos personagens; às vezes em alucinações de duplicação da pessoa do sujeito. Essas intuições são manifestamente parentes de processos muito constantes da criação poética e parecem uma das condições da tipificação, criadora do estilo.

3.– Mas o ponto mais notável que isolamos dos símbolos engendrados pela psicose é que os seus valores de realidade não são em nada diminuídos pela gênese que os exclui da comunidade mental da razão. Os delírios, com efeito, não necessitam de nenhuma interpretação para exprimir — só pelos seus temas, e de modo admirável — esses complexos instintivos e sociais que a psicanálise se dá tanto o trabalho de revelar nos neuróticos. Não é menos notável que as reações mortíferas desses doentes produzam-se muito frequentemente num ponto nevrálgico das tensões sociais da atualidade histórica.

Todos esses traços próprios à experiência vivida paranoica deixa-lhe uma margem de comunicabilidade humana, onde ela mostrou, em outras civilizações, toda a sua potência. E isso ela ainda não perdeu em nossa própria civilização racionalizante: pode-se afirmar que Rousseau, a quem o diagnóstico de paranoia típica pode ser dado com a maior certeza, deve à sua experiência propriamente mórbida a fascinação que ele exerceu no seu século pela sua pessoa e pelo seu estilo.[12] Saibamos também ver que o gesto criminoso dos paranoicos às vezes tumultua tão profundamente a simpatia trágica que o século, para se defender, já não sabe se deve despojá-lo de seu valor humano ou então acachapar o culpado sob a sua responsabilidade.

Pode-se conceber a experiência vivida paranoica, e a concepção do mundo que ela engendra, como uma sintaxe original, que contribui para afirmar, pelos laços de compreensão que lhe são próprios, a comunidade humana. O conhecimento dessa sintaxe parece-nos uma introdução indispensável à compreensão dos valores simbólicos da arte, e muito especialmente aos problemas do estilo — a saber, das virtudes de convicção e de comunhão humana que lhe são próprias, não menos que aos paradoxos de sua gênese —, problemas sempre insolúveis a toda e qualquer antropologia que não estiver liberta do realismo ingênuo do objeto.


INFORMAÇÕES ADICIONAIS | A revista Minotaure [Minotauro], publicada em Paris entre os anos de 1933 e 1939, foi um periódico de orientação surrealista fundado por Albert Skira [1904-1973], André Breton [1896-1966] e Pierre Mabille [1904-1952]. Tinha como objetivo apresentar o surrealismo à nova geração de teóricos e artistas; porém, com a deflagração da II Guerra Mundial, Skira se viu diante da necessidade de interromper a publicação no ano de 1939. Quanto ao volume contendo a tese de Lacan, acompanhada do compilado do qual faz parte este artigo que o autor havia publicado em 1933 na Minotaure, ele se encontra traduzido em português brasileiro: Da psicose paranoiaca em suas relações com a personalidade. Trad. A. Menezes; M. A. C. Jorge; P. M. Silveira Jr. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, pp. 375-380.



[1] Relativo a “númeno” (a coisa em si; a realidade tal como existe em si mesma, de forma independente da perspectiva), termo cunhado por Immanuel Kant [1724-1804] a partir do grego νοούμενoν — que em Platão era utilizado para falar da ideia, “aquilo que é pensado”. (N. do T.)
[2] Data de 1789 a “Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen” [Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão]. (N. do T.)
[3] Philippe Pinel [1745-1826] estou em Montpellier, uma das primeiras universidades de medicina da Europa, fundada em 1220. Formou-se em 1773 e logo depois tornou-se doutor pela Escola de Medicina de Toulouse. Em Paris, frequentava os círculos de escritores, literatos e cientistas imbuídos pela filosofia iluminista. Em 1793, nomeado pelo Governo Revolucionário como médico-chefe do Hospital de Bicêtre e diante das precárias condições em que os alienados se encontravam, solicitou autorização à Assembléia Nacional para retirar as correntes dos pacientes, à época um tratamento usual para os doentes mentais. É considerado o principal percussor do processo de mudança que possibilitou o surgimento do alienismo na sociedade moderna, integrando a corrente que constituiu o saber psiquiátrico por meio da observação e da análise sistemática dos fenômenos perceptíveis da doença. Ao longo de todo o século XIX outros alienistas deram continuidade a tais conceitos a partir das observações por ele feitas. Em 1795, foi para o hospital de Salpêtrière, onde atuou por 31 anos. (N. do T.)
[4] Discípulo de Philippe Pinel [1745-1826] e continuador de sua obra, Jean-Étienne Dominique Esquirol [1772-1840] foi nomeado médico da Salpêtrière em 1811. Sua vida profissional destacou-se pelo empenho em construir e organizar diversos manicômios. Para ele, a loucura era definida pelo delírio e acometia a vontade; percepção que foi considerada, à época, um grande avanço em relação ao trabalho de Pinel, embora utilizasse elementos do tratamento moral. Via na questão do isolamento uma grande importância para o tratamento eficaz do paciente, e o justificava atribuindo à presença de parentes e amigos uma das causas da loucura. Ele e seus alunos tiveram um papel fundamental no estabelecimento do sistema institucional e da legislação do campo psiquiátrico francês, sobretudo com a aprovação de uma lei, que data de 1838, regulando a assistência aos doentes mentais e prevendo dois tipos de internação (a voluntária e a compulsória) — lei que seria copiada por diversos outros países. (N. do T.)
[5] O Artigo 64 do Código Penal francês havia sido criado pela Lei 1810-02-13, promulgada em 23 de fevereiro de 1810. Revogado posteriormente pela Lei 92-1336 de 16 de dezembro de 1992, com a entrada do novo Código Penal, ele previa que “não há nem crime nem delito se o acusado estava em estado de demência no momento da ação, ou se foi constrangido por uma força à qual não pôde resistir [força maior]”. (N. do T.)
[6] Psiquiatra alemão, Emil Kraepelin [1856-1926] foi discípulo de Wilhelm Wundt [1832-1920]. Em 1878, concluiu seu curso de medicina com uma tese sobre o lugar da psicologia na psiquiatria. Empregou as técnicas experimentais de Wundt para estudar os efeitos da droga, do álcool e da fadiga nas funções psicológicas e, em 1881, publicou um estudo sobre a influência das doenças infeciosas no surgimento de doenças mentais. Em seu Compendium der Psychiatrie (1883), apresentou sua classificação nosológica das perturbações mentais. Fez uma divisão entre doenças exógenas (causadas por condições externas e consideradas curáveis) e endógenas (que tinham causas biológicas, tais como danos cerebrais, disfunções metabólicas ou fatores hereditários, vistas como incuráveis). Para ele, a psicose maníaco-depressiva e a melancolia eram consideradas doenças exógenas — e, portanto, tratáveis — enquanto a esquizofrenia seria endógena — logo, intratável. Distinguiu pelo menos três variedades clínicas da esquizofrenia: catatonia (perturbação das atividades motoras), hebefrenia (reações/comportamentos emocionais inapropriados) e paranoia (alucinações e ilusões de grandeza e perseguição). (N. do T.)
[7] Ludwig Binswanger [1881-1966], psiquiatra e escritor suíço, iniciou seus estudos em medicina na cidade de Lauzanne, os quais foram continuados em Heidelberg e Zurique. Começando sua atuação profissional como assistente voluntário na Clínica Universitária de Burghölzli, ali trabalhou com Eugen Bleuler [1857-1939]. Orientado por Carl Gustav Jung [1875-1961], conclui sua tese de doutorado tendo como tema o reflexo psicogalvânico. Em seguida, estudou na Clínica Psiquiátrica Universitária de Jena (onde lecionava seu tio, Otto Binswanger [1852-1929]) e no Sanatório de Kreuzlingen, que havia sido fundada pelo seu avô. Em 1911 assume a direção do Sanatório, cargo que ocupará até 1956. Na Suíça, foi o primeiro a introduzir a psicanálise na clínica psiquiátrica — até o fim da vida, aliás, conservará firme sua amizade e sua abundante correspondência com Sigmund Freud [1856-1939]. Aplicando os princípios da fenomenologia existencial à psiquiatria, no entanto, ficará conhecido como precursor da daseinsanálise. Em 1956, receberia — juntamente com Ernst Kretschmer [1888-1964] — a Medalha Kraepelin pelos feitos no campo da psiquiatria. (N. do T.)
[8] No ano anterior, Binswanger havia publicado o artigo intitulado “Über Ideenflucht” [Sobre a fuga de ideais]. Ademais, em 1933, publica por uma editora suíça um livro homônimo. Cf. L. Binswanger (1932) “Über Ideenflucht”. Schweizer Archiv für Neurologie und Psychiatrie, vol. 27, n. 2, pp. 203-17. Cf. também: L. Binswanger (1933) Über Ideenflucht. Zürich: Art. Institut Orell Füssli. (N. do T.)
[9] J. Lacan (1932) De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité. Paris: Seuil, 1975. (N. do T.)
[10] Cf. a carta de Jacques Lacan [1901-1981] ao escritor surrealista Ferdinand Alquié [1906-1985], datada de 6 de agosto de 1929: “Πάντα ῥεῖ – Hiatus Irrationalis”. Disponível em: <escritosavulsos.com/1929/08/06/carta-alquie-3/> (N. do T.)
[11] Termo composto do grego antigo, παράνοια [para + noia] significa de-mência, des-razão, estar fora/além de si. (N. do T.)
[12] Cf. A. Lilti (2008) “The writing of paranoia: Jean-Jacques Rousseau and the paradoxes of celebrity”. Representations, vol. 103, n. 1, pp. 53-83. Disponível em: <histoire.ens.fr/IMG/file/Lilti/Lilti-Representations.pdf>. Cf. também: A. Lilti (2010) “Reconhecimento e celebridade: Jean-Jacques Rousseau e a política do nome próprio” [Trad. R. Campos]. Topoi, 2014, vol. 15, n. 29, pp. 635-649. Disponível em: <doi.org/10.1590/2237-101X015029010>. (N. do T.)

11.05.1933 | Um caso de demência precocíssima

[ Un cas de démence précocissime ]

Comunicação realizada por Henri Claude [1869-1945], Georges Heuyer [1884-1977] e Jacques Lacan [1901-1981], junto à Sociedade Médico-Psicológica de Paris, em 11 de maio de 1933. Nela é apresentado o caso, acompanhado no serviço coordenado por Claude, de um doente com 10 anos e meio de idade; segundo os autores, a criança é acometida pelo que, no começo do século, Sante de Sactis [1862-1935] havia chamado de “demência precocíssima”.

 

Annales Médico-psychologiques, 1933, vol. 1, n. 1, pp. 620-624.

 

O

ferecemos à controversa questão da demência precocíssima[1] a contribuição de um caso cujas evolução e apresentação atuais são absolutamente típicas da demência precoce, que se iniciou oito anos e meio atrás e vem evoluindo há dois.

Apresentação atual – G. Jacques, 10 anos e 1/2, apresenta-se num estado demencial cujas particularidades são características.

Entra, indiferente ao entorno. Senta-se quando lhe dão ordem e aos poucos adquire uma postura plicaturada — cabeça próxima dos joelhos, cotovelos colados no corpo —, que ele irá manter durante toda a apresentação, até o momento que, solicitado, deixará essa postura e irá embora com a mesma indiferença.

Mutismo completo. Sorriso estranho, inexpressivo, estático, alternando com uma mímica[2] ansiosa discordante, sobre um rosto com grande boniteza nos traços.

Os movimentos espontâneos são hesitantes, receosos, inibidos tão logo esboçados. Tateia os objetos como que ao acaso, cheirando-os às vezes; ao retornar a eles, não parece reconhecê-los. Na marcha, interrompe-se; dá meia-volta. Constatável balanço dos membros superiores.

Movimentos solicitados: obedece algumas pessoas por ordens simples; mas, frequentemente inibido, apresenta tipicamente o sinal da mão de Kraepelin.[3]

Os movimentos forçados encontram oposição. Por vezes cede e é possível constatar a ausência do sinal da roda dentada,[4] mas também certa hipertonia com um ligeiro ricochete ao final do movimento de extensão do antebraço sobre o braço.

Há um mês, surgimento de alguns sinais catatônicos, e particularmente de uma nítida conservação das posturas.

A ecomímia[5] existe há pelo menos seis meses. Agora muito fácil de obter, ela permite constatar a ausência de dismetria,[6] de adiadococinesia,[7] e até mesmo de distúrbios do equilíbrio estático (fica num só pé).

Leve hiperrefletividade tendinosa. Sem sinal de Babinski.[8]

Sem distúrbio da convergência ocular, nem da motilidade, a não ser um leve estrabismo externo que se marca por intermitência e que se pode nos afirmar congênito.

Incontinência permanente, urinária e fecal.

Sem estado saburral da língua. Sem sialorreia.[9]

No sangue, Bordet-Wassermann,[10] Meinicke[11] e Kahn[12] negativos.

Líquido cefalorraquidiano: hipertensão: 48-27 (sentado).[13] Albumina: 0,12. Açúcar: 0,65. Leucócitos: 2. Reação do benjoin:[14] 00000.02200.00000. Bordet-Wassermann negativo.

(621) Bom estado físico. Desenvolvimento corporal mediano, delgado, astênico.

Implantação baixa dos cabelos.

Orelha irregular, assimétrica, descolada à esquerda, com tubérculo de Darwin[15] bilateral e lóbulos anexados.

Axifoide.[16] Desenvolvimento genital normal.

Esvaziamento petromastoideu[17] à direita. Do mesmo lado, cicatriz operatória pré-esternocleidomastoidea de cerca de 10 cm.

Histórico da doença – Anamnese pela mãe.

Nascido a termo, 4 kg. 500, parto normal. Primeiro dente: seis meses. Marcha: 17 meses. Primeiras palavras por volta dos 18 meses. Frase pequena por volta dos dois anos e 1/2, três anos. Desfralde aos dois anos. Um irmão, bem de saúde, com 6 anos. Sem abortos. Mãe bizarra.

Broncopneumonia aos três anos. Sarampo seguido de mastoidite[18] aos seis anos. Em seguida, período de febre alta, a princípio sem explicação (pensa-se numa apendicite), que se resolve, diz a mãe, com a “operação da jugular”.

Parece, quando se a interroga de perto, que a criança nunca havia sido muito adiantada na escola. Mas, durante os meses que antecederam a doença, “ela deu uma boa recuperada” — sucesso efêmero no qual a mãe insiste para marcar o contraste com o declínio mental que veio em seguida.

A invasão catastrófica dos distúrbios é situada por ela em fevereiro de 1932, e antecedida por um episódio infeccioso muito limitado, qualificado como gripe.

Na realidade, reações estranhas haviam surgido uns seis meses antes. A bem da verdade, a situação familiar estava sendo perturbada pela presença de um terceiro que ocasionava violentas cenas de ciúme por parte do pai. A criança, então com oito anos e 1/2 de idade, é por isso afetada com uma intensidade que parece acima de sua idade. Ao mesmo tempo, dá a ver ímpetos violentos de uma evidente absurdidade (sem ser provocado, joga para longe diversos objetos que pertenciam à mãe). Marca em seus dizeres uma desafeição totalmente discordante em relação aos avós maternos, que até então amava muito. Mas mostra-se brilhante na escola. É só em fevereiro de 1932 que ele tem de deixá-la, quando surge o renque de distúrbios mentais em que seu círculo próximo reconhece a doença.

Ponto digno de nota, esse início clínico é de natureza delirante. Ansiedade extrema.

Insônia. Estados oníricos: vê um olho por trás das cortinas, visões atrozes perto de si; ouve coisas, que lhe dão medo, sobre o bicho-papão: “Não era a mãe que falava disso para ele, mas ele próprio”.

Mas, sobretudo, ideias hipocondríacas, ciente de estar gravemente acometido: olha-se no espelho, acha-se amarelo; diz que sofre do mesmo mal que um primo seu, pós-encefalítico comprovado, que apresenta um espasmo de torção. Por outro lado, temas de interpretação (622) típica: o estão seguindo, fazem reflexões a seu respeito na rua, o merceeiro lhe quer mal. A criança tem medo de ficar sozinha no cômodo.

Crises de violência, murros na mãe e na irmã; ataques de choro em que repete que não quer morrer. Ao mesmo tempo, imitação histeriforme da contratura do primo.

Este apresenta distúrbios motores pós-encefalíticos há dois anos, com integridade intelectual: está em contato frequente com a criança, que ele ajuda nas tarefas e a quem ensina violino.

Nota-se então em nosso doente um emagrecimento, que é logo seguido de um ganho de peso; algumas cefaleias; nem vômito, nem diplopia, nem sonolência, nem crises convulsivas, nem febre, nem outro fenômeno meníngeo. A criança dizia que tinha “areia nos olhos”, e isso é tudo o que se encontra como distúrbio da visão.

Aplicaram-na então uma série de sulfarsenol,[19] a qual desencadeia uma agitação extrema e é interrompida.

Em maio de 1932 um de nós é consultado a respeito de seu caso, e é de se compreender que então só se tenha falado em episódio confusional, em acidentes histeriformes. Nota-se uma agitação ansiosa, queixas, lamentações; a criança agarra-se à mãe, resiste, faz cara feia, fica imóvel e de cabeça baixa, apresenta movimentos frequentes de sucção. Seu estado mental, no entanto, é tal que permite o exame com os testes de Binet e Simon,[20] revelando um retardo mental de dois anos.

Nenhum sinal neurológico, taquicardia. Admitido quinze dias depois no anexo de neuropsiquiatria infantil  e  colocado em isolamento, apresenta então tiques  incessantes, particularmente movimentos de focinho — um estado hipomaníaco que determinou a sua admissão. Realizou várias tentativas de fuga e foi encontrado, certa vez, na plataforma de uma estação.

No serviço apresentará alternâncias entre excitação, com ansiedade extrema e gritos, e estupor indiferente. Com Gardenal,[21] dorme bem. Tem ataques de gulodice. Ímpetos de fuga extremamente bruscos (pula por uma janela do térreo); deteriora e quebra objetos.

Obedece ordens simples; apresenta um mutismo psicogênico que cede quando se o contraria; responde, no mais das vezes, através de grunhidos ou tiques executados à guisa de resposta, e olhando para o observador. Colocado na presença da mãe, ele diz: “É uma senhora”; no entanto, a reconhece, apesar da ausência aparente de toda e qualquer emoção. Na sala de exames, inspeciona irrequieto todo os cantos e armários.

Desmazelado com a higiene, incontinente. O monitor aponta: “momentos de alegria e de vivacidade extraordinária” e “atitudes de pavor e de sofrimento”.

Uma melhora sensível permite deixá-lo por dois meses, durante as férias, com a família. Mostra-se calmo, mas inafetivo, desconexo, parcialmente desorientado, semimudo. Vagas ocupações; (623) no entanto, brinca corretamente com o seu trilho de brinquedo, interessando-se, ademais, apenas pelas formações de trens na via próxima —  formações que ele vai espreitar de uma ponte que a atravessa, sem realizar, aliás, nenhuma tentativa inquietante.

Em novembro trazem-no de volta até um de nós, que, diante de seu estado nitidamente agravado, dá o diagnóstico de demência precocíssima. Determinadas modificações episódicas aparecerão em seu estado; os tiques desaparecerão, mas a criança irá mergulhar numa postura cada vez mais monótona de demência hebefrênica.[22] Após um curto período de emagrecimento, irá se estabilizar numa relativa engorda. Os tratamentos serão ineficazes. Certa vez, será constatado um tremor especial dos dedos, “enrolando pílulas”.[23] Auscultação e radiografia do tórax negativas. Com pouca diferença, fixou-se há seis meses em seu estado atual.

Diante desse estado e dessa evolução, pensamos poder concluir:

1°) pelo diagnóstico de demência precocíssima, com o péssimo prognóstico que a estabilização psíquica e somática da doença comporta;

2°) quanto à etiologia, não podemos determinar o eventual papel de uma encefalite epidêmica, para a qual as presunções que a observação nos fornece são insuficientes: contato inegável com um encefalítico, episódio infeccioso no início, mas caráter muito reduzido e muito fugaz dos raros sinais clínicos que teriam um valor de probabilidade.

Na ausência de informações mais precisas, não podemos nos pronunciar sobre a possível existência de uma reação meníngea, no momento que a criança teve muito provavelmente uma tromboflebite[24] do golfo de sua jugular.[25]

3°) Notemos, por fim, a existência prévia de certo estado de debilidade mental e a significação, muito provavelmente já patológica, das brilhantes faculdades reconhecidas na criança — evolução já notada em observações de demência precocíssima, e particularmente numa do Dr. Jost,[26] de Estrasburgo.[27]

Sr. COURTOIS[28] – Creio que a mastoidite supurada, por sua reação nas meninges, pode ter tido um papel mais provável que o hipotético contágio da encefalite do primo.

Sr. XAVIER ABÉLY[29] – A tuberculose pode ter tido um papel.

(624) Sr. LACAN – Não me parece ter havido aí nenhuma inegável manifestação tuberculosa no passado do sujeito. O nosso inquérito não nos permite determinar se houve uma reação meníngea no decorrer das complicações da mastoidite.


INFORMAÇÕES ADICIONAIS | Sobre as relações entre a demência precocíssima e a esquizofrenia infantil, cf. A. Homburger (1926) Vorlesungen über Psychopathologie des Kindesalters. Berlin: Springer; A. A. Brill (1926) “Psychotic children: treatment and prophylaxis”, American Journal of Psychiatry, vol. 82, n. 3, pp. 357-64; H. W. Potter (1933) Schizophrenia in children, American Journal of Psychiatry, vol. 89, n. 6, pp. 1253-1270. Sobre a demência precoce, tal como descrita por Emil Kraepelin, cf. M. de Campos (1929) “O grupo das esquizofrenias ou demência precoce. Relatório apresentado ao III Congresso Brasileiro de Neurologia, Psiquiátrica e Medicina Legal. Rio de Janeiro. Julho de 1929”, História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 17, supl. 2, pp. 709-732. Disponível em: <dx.doi.org/10.1590/S0104-59702010000600030>. (N. do T.)



[1] Sante de Sactis [1862-1935], médico pioneiro do campo da psicologia na Itália, fala pela primeira vez daquilo que denomina “demência precocíssima” no ano de 1905, em Roma, quando do 5º Congresso Internacional de Psicologia. Nesse momento, ele a considera como sendo uma psicose que apresenta analogias com a demência precoce, descrita pelo psiquiatra alemão Emil Kraepelin [1856-1926]. E apesar de, em 1924, chamá-la de “esquizofrenia pré-púbere”, serão os trabalhos de A. Homburguer (1926), A. A. Brill (1926) e H. W. Potter (1933) que irão estabelecer a pertinência do conceito de Eugen Bleuler [1857-1939] para a compreensão de patologias infantis. Cf. G. Morgese; G. P. Lombardo (2017) Sante De Sanctis. Le origini della neuropsichiatria infantile nell’Università di Roma: la dementia praecocissima. Roma: Università La Sapienza. (N. do T.)
[2] Trata-se da mímica facial. Os músculos delgados responsáveis pelas expressões faciais são chamados, justamente, de músculos da mímica facial. (N. do T.)
[3] Possivelmente se trate daquilo que, em seu Psychiatrie, ein Lehrbuch für Studierende und Ärzte [Psiquiatria, um manual para estudantes e médicos], Emil Kraepelin [1856-1926] descreve como um aperto de mãos característico entre os maneirismos apresentados pelos pacientes acometidos por demência precoce: estender ao outro apenas a borda da mão ou a ponta dos dedos. Em inglês: E. Kraepelin (1889) Dementia praecox and paraphrenia. Trad. R. M. Barclay. Chicago: Chicago Medical Book Co., 1919, pp. 107, 127. (N. do T.)
[4] Sintoma neurológico extrapiramidal devido à hipertonia muscular e a consequente limitação dos movimentos passivos dos segmentos dos membros. Ocorre uma resistência que cede aos poucos, como que em pequenos trancos, o que remete aos movimentos de uma roda dentada. Trata-se de um sinal semiológico observado na doença de Parkinson. (N. do T.)
[5] Repetição automática da mímica do observador. (N. do T.)
[6] Incapacidade de direcionar ou limitar adequadamente os movimentos. (N. do T.)
[7] Incapacidade de executar movimentos alternados rápidos. (N. do T. )
[8] Também chamado de “reflexo plantar”, o sinal de Babinski — que recebe o nome do neurologista francês que o descobriu, Joseph Babinski [1857-1932] — consiste na extensão do hálux e na abertura em leque dos dedos em decorrência de um estímulo na planta do pé. (N. do T.)
[9] Escoamento de saliva para fora da boca. (N. do T. )
[10] Levando os nomes de Jules Bordet [1870-1961] — Nobel de fisiologia e medicina em 1919, por sua descoberta do bacilo da coqueluche — e August Paul von Wassermann [1866-1925] — um bacteriologista alemão —, a reação Bordet-Wasserman trata-se de uma reação de hemólise (dissolução dos glóbulos vermelhos) que foi desenvolvida por Wassermann em 1906, não sem reconhecer a importância de achados anteriores realizados por outros cientistas, dentre eles Jules Bordet. Consistia essencialmente em pôr frente a frente o antígeno, um complemento e o soro suspeito de conter o anticorpo sifilítico, permitindo detectar precocemente um anticorpo não específico contra a sífilis (a anticardiolipina), garantindo a intervenção medicamentosa precoce. Cf. E. Gonçalvez (1926) Sobre a sero-reacção de Bordet-Wasserman. Porto: Enciclopédia portuguesa. Disponível em:  <repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/17673/2/221_2_FMP_TD_I_01_C.pdf>. (N. do T.)
[11] Desenvolvida pelo serologista alemão Ernst Meinicke [1878-1945], trata-se de uma reação para diagnóstico da sífilis, consistindo na floculação do soro com um extrato de miocárdio bovino. (N. do T.)
[12] Semelhante à Bordet-Wasserman, trata-se de uma reação de floculação do líquido cefalorraquidiano para diagnóstico da sífilis desenvolvida pelo imunologista lituano Reuben Leon Kahn [1887-1979]. (N. do T.)
[13] A pressão considerada normal, para o paciente sentado, é de 30-20 cmH2O (ou 24-16 mmHg). (N. do T.)
[14] A Reação do Benjoim Coloidal é uma reação de floculação de uma suspensão coloidal de benjoim pelo líquido cefalorraquidiano (L.C.R.) utilizada como meio de diagnóstico tanto da sífilis quanto das meningites. Ela é realizada em 15 (ou 16) tubos nos quais se faz a diluição sucessiva do L.C.R., e a cada tubo adiciona-se a mesma quantidade de coloide de benjoim, observando-se, depois, a ocorrência ou não de floculação nos tubos. O tubo que não apresentar floculação receberá o valor 0; o tubo com floculação total, o valor 2;  o que for parcial, o valor 1. Dito isso, o resultado será dado por uma sequência de 15 algarismos (ou uma vírgula e mais um), contados da direita para a esquerda. (N. do T.)
[15] Saliência cartilaginosa na borda da orelha. (N. do T.)
[16] Não apresenta apêndice xifoide, localizado na extremidade inferior do esterno. (N. do T.)
[17] Esvaziamento da porção do osso temporal conhecida como porção petrosa (ou ainda piâmide ou parte petrosa), que abriga os órgãos da audição e do equilíbrio. (N. do T.)
[18] Infecção bacteriana da apófise mastoide: o osso proeminente situado atrás do ouvido. (N. do T.)
[19] Sulfarsenol (ou sulfarsfenamina) trata-se de um antibiótico, de aplicação geralmente intramuscular, utilizado no tratamento da sífilis congênita infantil. Foi desenvolvido por volta de 1915 na cidade de Paris, no laboratório do médico germano-guatemalteco Friedrich Lehnhoff [1871-1932] (N. do T.)
[20] Com sua primeira versão datando de 1905 (e a segunda e a terceira, respectivamente, de 1908 e 1911), a bateria de teste Binet-Simon leva o nome de seus dois criadores: Alfred Binet [1857-1911] —que havia sido pupilo de Jean Martin Charcot [1825-1893] — e Théodore Simon [1872-1961]. (N. do T.)
[21] Introduzido em 1912, o famigerado nome comercial se refere a um medicamento cujo princípio ativo, o fenobarbital, é um barbitúrico com propriedades anticonvulsivantes e sedativas. (N. do T.)
[22] Forma de esquizofrenia que se entende manifestar na adolescência, caracterizando-se por depressão, imaginação absurda e ilusória com deterioração gradual e progressiva das faculdades mentais. (N. do T.)
[23] Tremor rítmico típico da doença de Parkinson, envolve o polegar e o indicador. Assemelha-se ao ato de contar moedas (ou enrolar pílulas). (N. do T.)
[24] Inflamação de uma ou mais veias causada por um coágulo sanguíneo. (N. do T.)
[25] O seio sigmoide (um dos seios venosos da dura-máter, a mais externa das meninges) faz um trajeto curvo em direção anterior e inferior. Na sua extremidade anteroinferior, ele muda de direção, para cima, e então mergulha em direção ao pescoço. A saliência originada por isso recebe o nome de “bulbo da veia jugular”; e, por sua vez, a cavidade do osso temporal que a abriga é denominada “golfo da jugular”. (N. do T.)
[26] Waldemar Jost [?-?] havia sido assistente da Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina de Estrasburgo, na França, na qual viria a ser chefe de laboratório. (N. do T.)
[27] W. Jost (1927) “Dementia praecocissima”, Travaux de la clinique Psychiatrique de la Faculté de Médecine de Strasbourg. Strasbourg: Les Editions Universitaires de Strasbourg, p. 191. [Disponível em: <gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9646473h/f203> (N. do T.)].
[28] Aluno de Ludovic Marchand [1873-1976], Adolphe Courtois era cunhado de Édouard Toulouse [1865-1947], com quem colaborou no Hospital Henri-Rousselle, no complexo hospitalar Sainte-Anne. Fez seu externato em 1923 e seu internato manicomial em 1927; foi médico-assistente e, a partir de 1931, titular manicomial. Em sua curta carreira, empreendeu diversas investigações biológicas e anatomopatológicas, abordando temas nos quais neurologia e psiquiatria encontravam-se intimamente relacionadas. Defendeu seu doutorado na Faculdade de Medicina de Paris, com uma tese intitulada Sur un syndrome comitio-parkinsonien: étude anatomo-clinique [Sobre uma síndrome epileptoparkinsoniana: estudo anatomoclínico] (Paris: Libr. Le François, 1928), diante de uma banca presidida pelo emérito Georges Guillain [1876-1961], o qual — na companhia de dois outros colegas — havia descrito a doença que também levaria seu nome: a Síndrome de Guillain-Barré (em que o sistema imunológico ataca os nervos do enfermo). Em 1925, havia sido um dos fundadores da revista L’Évolution psychiatrique, tendo como intuito conjugar psiquiatria e psicanálise. Seus caminhos e os de Jacques Lacan [1901-1981] cruzaram-se em diversas ocasiões. (N. do T.)
[29] Xavier Abély [1890-1965] obteve o título de doutor em medicina na cidade de Toulouse, no ano de 1916. Viria a ser médico-chefe tanto do hospital psiquiátrico Villejuif quanto de Sainte-Anne, em Paris. (N. do T.)

19.05.1932 | Espasmo de torção e distúrbios mentais pós-encefalíticos

[ Spasme de torsion et troubles mentaux postencéphalitiques ]

Comunicação realizada por Henri Claude [1869-1945], Pierre Migault [1898-?] e Jacques Lacan [1901-1981], junto à Sociedade Médico-Psicológica de Paris, em 19 de maio de 1932. Nela é apresentado o caso, acompanhado no serviço coordenado por Claude, de uma doente que, em decorrência de um quadro infeccioso, manifesta distúrbios mentais de ordem dissociativa acompanhados de uma distonia postural.

 

Annales Médico-Psychologiques, 1932, vol. 1, n. 1, pp. 546-551.

 

Apresentamos à Sociedade Médico-Psicológica uma doente que nos pareceu digna de nota, tanto pelo agrupamento dos sintomas que ela apresenta quanto por sua evolução.

Trata-se de uma mulher de 28 anos, Sra. G… Pouca coisa a observar nos antecedentes hereditários, tirante o fato de a mãe ter apresentado uma coreia[1] aos 17 anos de idade, a qual durou dois anos.

Infância normal. Casada aos 17 anos. Atividade produtiva (secretária). Comportamento afetivo totalmente normal. Em particular, nenhuma animosidade para com a sogra, contra a qual manifestará ulteriormente, durante a doença, sentimentos de ódio. Um filho natimorto um ano após o casamento.

Há quatro anos, episódio infeccioso de surgimento abrupto. Aparência de gripe banal. Febre oscilando em torno de 39° durante uma semana. Cefaleia extremamente violenta fazendo a doente dizer: sinto que estou ficando louca. Dores musculares. Sem diplopia.[2] Sem sonolência suspeita. Ao cabo de uma semana, melhora e cura quase completa; contudo, persistência de cefaleias — intermitentes, porém (547) violentas. Nota-se, ao mesmo tempo que distúrbios infecciosos, uma amenorreia[3] que perdura por dois meses. A doente retorna ao trabalho por volta de cinco meses após o início do episódio infeccioso. Nesse momento, e muito rapidamente, surgem passageiras modificações do caráter e do humor (desentendimento com seu chefe no serviço, depressão, ideias de suicídio). Longa remissão, depois reaparecimento dos distúrbios em 1929 (improdutividade no trabalho, ideias de suicídio). Hospitalizada no Hospital Henri-Rousselle,[4] é considerada como estando em um estado de depressão atípica. Mediante observação, notam-se ideias de negação (“Tudo é vazio; meu estômago, tudo”); um sentimento de inibição (“Tenho dificuldade de falar”), de transformação (“Não urino mais como antes”, “estou com a vista fraca, não profunda, já não consigo fixar as pessoas. Estou toda em câmera lenta”). Sobretudo a ideia obsessiva, “Vou ficar louca”, e um sentimento de estranheza e de mal-estar permanente.

Mediante exame somático não se nota nada de anormal, tirante uma taquicardia de 120 que se produz quando de manifestações emotivas.[5] Ela sai do hospital Henri-Rousselle praticamente curada, ao cabo de quatro meses. Esse estado persiste durante dois meses, aproximadamente; depois surge bruscamente um período de mutismo quase completo, durante o qual, não obstante, a doente se comunica por escrito com o seu círculo próximo. Atividade sensivelmente normal no domínio reduzido do seu íntimo. Estava grávida à época. No decorrer da gestação, teria apresentado alguns movimentos nervosos aos dizeres do marido, que acrescenta que nessa época se havia pronunciado o nome de “Parkinson”. Daí em diante, posturas conservadas longamente (durante 1/2 hora o rosto permanece contraído, olhando para a mão retesada).

Durante toda a gestação a apresentação é a mesma. Evolução normal da gravidez e parto igualmente normal. Algumas falas bizarras durante o trabalho de parto: “Vontade orientada ao contrário”… sentimento expresso de duplicação da personalidade. Após o parto, mutismo completo. No decorrer de uma estada na Vendeia,[6] rompe o silêncio para pedir para ser internada. Ela é então colocada em Roche-sur-Yon;[7] depois, após uma breve estada no Henri-Rousselle, é internada em Perray-Vaucluse.[8] É então considerada como acometida por um estado depressivo sintomático de demência precoce. Nela se assinala, nessa época, um mutismo obstinado, tiques, grunhidos e gestos estereotipados.

De 6 de setembro a 11 de dezembro de 1930, nas diferentes atestações, nota-se:

“Síndrome de maneirismo,[9] com estereotipias verbais e motoras” (Courbon,[10] 7 de set. de 1930).

“Estado estuporoso com mutismo melancólico” (Génil-Perrin,[11] 20 de set. de 1930).

Esse estado estuporoso persiste até o final de novembro de 1930. O mutismo permanece obstinado (recusa em responder de outra forma que não por escrito). Sem elementos confusionais.

(548) Em dezembro de 1930 a Sra. G. sai, depois de há pouco ter se mostrado muito melhor, com a seguinte atestação: Psicose discordante[12] em regressão (Courbon).

Nesse último período (de dezembro a agosto de 1931), que precede imediatamente a sua entrada no serviço: claustração, comportamento cada vez mais bizarro. Desaceleração da atividade; não conseguia sentar-se à mesa com os seus. Comia sozinha e no seu horário. Parecia não sentir-se em casa — diz o marido —; era como que uma estranha. Seus atos eram realizados com uma lentidão extrema (levava duas horas para fazer um trabalho de dez minutos). Posturas incômodas de tipo catatônico ocorriam em crises. Seu olhar permanecia fixado em um canto do cômodo onde ela se encontrava. O fim dessas crises catalépticas era marcado por uma respiração suspirosa. Mutismo quase completo e irredutível (continua a conversar por escrito com seu círculo próximo, mas cada vez menos).

Por último, aparecimento de agitação. Postura ameaçadora para com a sogra, com ambivalência. (Chama a sogra para ficar com ela, a recebe bem, depois alega bruscamente não conseguir suportá-la). Desinteresse completo pela criança. É a sua agitação de caráter ameaçador que provoca um novo ingresso da doente no Manicômio.

Observada na Clínica (agosto de 1931), apresenta-se assim:

Postura mímica de defesa e de sofrimento. Cabeça inclinada sobre o ombro esquerdo.

Marcha oblíqua, cautelosa, extremamente lenta e amaneirada. Todos os movimentos lentos. Impulsões motoras: gritos, grunhidos, “relinchos”.

Respostas lentas, dadas em voz baixa, após um tempo de inibição considerável. Com a locução bem lenta, para bruscamente e depois retoma.

Afirmações proferidas de modo espontâneo ou provocadas (seja verbalmente, seja por escrito):

“Sempre a visão” (ela aponta para a esquerda) “do lugar em que fui trancada” (Manicômio de Vaucluse); “Estou sempre com a impressão de estar na mesma atmosfera de Vaucluse”.

“Nunca fui como os outros”.

“Nunca falei como todo mundo”; “Acredito sempre ter sido uma pessoa um pouco anormal”; “A minha sogra, de quem, no entanto, eu gosto… acreditei querer seu mal… mas eu não queria seu mal de jeito nenhum” (ambivalência); “Perco toda a noção do tempo, não faço nada a tempo”; “Não conseguia ficar na mesa com a minha família”; “Sinto que os meus sentimentos não são naturais”. Nenhuma ideia delirante, exceto um sentimento muito vago de influência. Em suma, apresentação depressiva atípica com alguns elementos obsessivos (visão do manicômio onde estava internada e mímica obsessiva) e outros elementos da série catatônica (impulsões, maneirismo). Fenômenos de bloqueio extremamente frequentes.

(549) No exame físico, pouco a se notar, tirante um fenômeno de roda dentada[13] nítido no braço direito, com uma contratura permanente dos grandes retos abdominais. Sem distúrbios de refletividade. Sem distúrbios oculares. Líquido cefalorraquidiano normal (glicorraquia: 0,53).[14]

O estado da doente no serviço permanece estacionário por muito tempo; ela apresentará breves surtos de ansiedade, no decorrer dos quis pedirá, sempre em voz baixa, para retornar para casa. Em voz alta só pronunciará insultos aos colegas. Ao receber a visita do marido e da criança, fica indiferente no mais das vezes, sem querer abraçá-los.

Progressivamente, o pouco de atividade fictiva que ela havia conservado desaparece por completo; permanece imóvel nos corredores, repetindo incessantemente e em voz baixa quando se a interroga: “Quero voltar para casa”. A sua mímica[15] é sempre a mesma (contração do rosto lembrando, em certa medida, a mímica ansiosa). De tempos em tempos, emite “grunhidos” ou “relinchos” particularmente sonoros quando não se sente observada. Ela apresenta, ademais, algumas fases de agitação no decorrer das quais sai quebrando vidraças, o que determina a sua internação no último mês de janeiro (estava, até então, no serviço de internação voluntária da Clínica). A partir da sua passagem para o serviço fechado, permanece sensivelmente no mesmo estado. Sua apresentação é sempre idêntica. Mímica, no todo, ansiosa. Feição pouco móvel, sem verdadeira imobilidade. Esboço de ômega melancólico.[16] Olhos semicerrados com mobilidade incessante dos globos oculares (jamais olhar direto). Lábios em bico e animados por uma espécie de tique de engolir o lábio inferior; flexão muito leve da cabeça com movimentos de oscilação lateral. Postura oblíqua do tronco com braço esquerdo, de quando em quando, completamente projetado para trás em hiperextensão e a palma da mão voltada para trás. Com o braço direito, movimentos estereotipados e furtivos (indicador sobre a bochecha direita, raspando o lado esquerdo do nariz e da borda inferior da mandíbula).

Marcha extremamente lenta, hesitante, provocada quando solicitado, mas com um atraso considerável. Marcha geral oblíqua “feito caranguejo”, cautelosa e amaneirada.

O interrogatório cada vez mais difícil conduz, após longos esforços, apenas à mesma resposta estereotipada, dada em voz extremamente baixa e com hesitação: “Queria … voltar… pra casa”; às vezes também: “eu não sou… como os outros…”.

A doente fica, o mais frequentemente, imóvel, às vezes empreendendo, com o auxílio de uma outra doente, um curto passeio pelo pátio, sempre com a mesma postura que já descrevemos.

As visitas do marido e da filha agora desencadeiam, com frequência, um ataque de choro, sem que ela possa dizer outra coisa que não o que ela habitualmente nos diz: “Queria… voltar… pra nossa casa”.

(550) Habitualmente, de nada se ocupa. Quanto a seus escritos, redigidos com uma lentidão extrema, mas de modo espontâneo, eles são raros. No início de sua estada no serviço a sua grafia era normal e o conteúdo, coerente, indicando sempre os mesmos sentimentos de bizarrice, de estranheza, de ambivalência e de desinteresse (já assinalados), mas também de subansiedade. Progressivamente, a grafia se alterou; o conteúdo reduziu-se a algumas fórmulas estereotipadas: “Eu tive bastante, bastante desgosto, desgosto, desgosto”; “Eu morro, morro, morro de tédio”.

O seu estado físico, apesar de curtos períodos de recusa parcial de alimentos, é bom. Não diferente de quando do seu ingresso, um exame físico completo não revela atualmente outros, a não ser uma certa hipertonia muscular com fenômeno da roda dentada (à direita). No domínio dos sinais negativos, observa-se a ausência de tremor e de distúrbios de refletividade.

As conclusões a serem tiradas do estudo dessa doente nos parecem dever ser as seguintes:

1º)  Nos antecedentes, tanto hereditários quanto pessoais, nada importante a ser retido;

2º) O início da afecção atual foi nitidamente infecciosa (temperatura oscilando em torno de 39°, cefaleia extraordinariamente violenta, insônias, dores musculares etc…).

Evidentemente, nessa época não se pode afirmar com certeza — e sobretudo retrospectivamente — o diagnóstico de encefalite epidêmica (lembremo-nos que não se notou nem sonolência, nem diplopia, nem mioclonias[17]). Mas sabe-se da frequência das encefalites atípicas. É, portanto, a uma afecção como essa que o conjunto dos outros sintomas e, por outro lado, as manifestações mórbidas apresentadas atualmente pela doente parecem-nos melhor se relacionar.

3º) Quanto aos distúrbios mentais, eles podem ser divididos assim:

a) Início depressivo atípico com alguns elementos obsessivos, podendo fazer com que se pense em uma demência precoce na sua origem.

b) No decorrer da doença: sinais de dissociação (distúrbios do curso do pensamento; distúrbios da noção do tempo; bradipsiquia;[18] fenômeno de bloqueio; sentimento de estranheza, de despersonalização). Sinais da série catatônica (fenômenos cataleptoides;[19] estereotipias verbais, motoras e respiratórias; maneirismo etc…).

c) Os distúrbios da afetividade merecem uma menção especial. A doente atravessou indiscutivelmente períodos de indiferença total em relação à filha e a tudo o que a circundava: (551) “Eu já não me interessava por coisa nenhuma…, por nada do que se passava ao meu redor”, escreveu ela em outubro de 1931.  Essa inafetividade às vezes dá margem a uma ambivalência: “A minha sogra, de quem, no entanto, eu gosto, foi embora pra casa dela… acreditei querer seu mal… mas eu não queria seu mal de jeito nenhum” (mesma carta).

Esses sintomas entram, evidentemente, no quadro clássico da demência precoce. Mas é preciso mencionar algumas manifestações divergentes. A doente chora no decorrer das visitas de seu marido e da sua filha, e a eles escreve: “Chorei depois que você foi embora…, morro de tédio”. Não vemos aí, no entanto, uma verdadeira objeção, pois trata-se provavelmente de manifestações emotivas sem verdadeiro substrato afetivo — como todo e qualquer comportamento da doente parece, aliás, indicar. De resto, suas queixas permanecem exclusivamente egocêntricas, e é preciso justamente ver nisso uma transformação profunda da afetividade normal da doente.

d) Entre múltiplos distúrbios, notemos uma atitude particular, no repouso e na marcha, comparável ao espasmo de torção, encontrado nas sequelas encefalíticas: cabeça inclinada sobre o ombro esquerdo, torção do tronco com ligeira flexão, hiperextensão intermitente e projeção para trás do membro superior A essa distonia de atitude acrescenta-se, marca da hipertonia, o fenômeno da roda dentada à direita.

Em resumo, essa doente pareceu-nos interessante sobretudo pela nitidez dos sintomas que ela apresenta e que mostra, uma vez mais, a existência de uma síndrome de dissociação que ocorre após uma doença infecciosa de tipo encefalítico, combinando-se com uma distonia postural, análoga ao espasmo de torção.


[1] Doença do sistema nervoso caracterizada por movimentos involuntários repetitivos, breves, irregulares e relativamente rápidos que começam em uma parte do corpo e passam para outra, de modo abrupto, imprevisível e, geralmente, contínuo. Envolve normalmente a face, a boca, o tronco e os membros. (N. do T.)
[2] Visão dupla. (N. do T.)
[3] Ausência da menstruação regular na fase fértil da vida. (N. do T.)
[4] O Hospital Henri-Rousselle — nascido do Centro de Psiquiatria e Profilaxia Mental, idealizado por Édouard Toulouse [1865-1947] e Georges Heuyer [1884-1977] — faz parte, hoje, do complexo hospitalar Sainte-Anne, após ter perdido sua autonomia em 1941. (N. do T.)
[5] Espera-se que um adulto saudável, em repouso, apresente batimento médio variando entre 60 e 90 batidas por minuto (N. do T.)
[6] Distrito francês localizado na região do País do Loire, no Golfo da Biscaia. (N. do T.)
[7] Trata-se, muito provavelmente, do Manicômio Distrital da Vendeia, inaugurado em 1853, atualmente denominado Centro Hospitalar Georges Mazurelle. Cf. <www.ch-mazurelle.fr/presentation-de-letablissement/un-peu-dhistoire/>. (N. do T.)
[8] O manicômio de Perray-Vaucluse, situado no atual distrito francês de Essonne, é o terceiro manicômio do antigo distrito do Sena. Foi inaugurado no ano de 1869, depois de Sainte-Anne (1867) e de Ville-Évrard (1868). Desde 2019, Sainte-Anne, Maison Blanche e Perray-Vaucluse encontram-se unificados sob a rubrica GHU Paris (Groupe Hospitalier Universitaire de psychiatrie & neurosciences). Cf. <www.ghu-paris.fr/fr/le-ghu-paris-fruit-dune-histoire-commune>. (N. do T.)
[9] Modalidade de expressão motora artificial, excêntrica e repetitiva, como uma caricatura de comportamento normal. (N. do T.)
[10] Paul Courbon [1879-1958], psiquiatra francês, formou-se em medicina na cidade de Lyon e trabalhou no manicômio de Amiens. É coautor, com Gabriel Fail [?-?], do trabalho que descreve a chamada síndrome de Fregoli: uma ilusão que consiste em acreditar que vários indivíduos, que não parecem uns com os outros, são a encarnação de uma pessoa só, que se disfarça ou muda de aparência. Cf. P. Courbon; G. Fail (1927) “Syndrome d’illusion de Frégoli et schizophrénie” [Síndrome de ilusão de Fregoli e esquizofrenia], Bulletin de la Société Clinique de Médecine Mentale, vol. 20, pp. 121-125. (N. do T.)
[11] Georges-Paul-Henri Genil-Perrin [1882-1964] foi um alienista francês conhecido por selar o caixão das teorias da degenerescência com a sua tese em medicina defendida em Paris no ano de 1913: Histoire des origines et de l’évolution de l’idée de dégénérescence en médecine mentale [História das origens e da evolução da ideia de degenerescência em medicina mental]. Em tempo, lembremos que ele apresentará o relatório “La psychanalyse en médecine légale” [A psicanálise em medicina legal] no XVII Congresso de Medicina Legal, que irá ocorrer na semana seguinte a esta apresentação realizada por Claude, Migault e Lacan. Cf. <www.histoiredelafolie.fr/psychiatrie-neurologie/la-psychanalyse-en-medecine-legale-par-georges-genil-perrin-1932>. (N. do T.)
[12] Termo cunhado por Philippe Chaslin [1857–1923], um dos primeiros opositores à teoria da degenerescência, que entendia que a não congruência estava entre os principais sintomas da esquizofrenia. Iniciando sua carreira em Bicêtre, Chaslin havia atuado na Salpêtrière até 1922, tendo se tornado presidente da Sociedade Médico-Psicológica no ano de 1917. (N. do T.)
[13] Sintoma neurológico extrapiramidal devido à hipertonia muscular e a consequente limitação dos movimentos passivos dos segmentos dos membros. Ocorre uma resistência que cede aos poucos, como que em pequenos trancos, o que remete aos movimentos de uma roda dentada. Trata-se de um sinal semiológico observado na doença de Parkinson. (N. do T.)
[14] Os níveis normais de glicose no líquido cefalorraquidiano oscilam entre 0,45 e 0,80 g/l.
[15] Trata-se da mímica facial. Os músculos delgados responsáveis pelas expressões faciais são chamados, justamente, de músculos da mímica facial. (N. do T.)
[16] Chamava-se de ômega melancólico a ruga com o formato da letra grega (Ω) caracteristicamente presente na testa de pessoas consideradas deprimidas. (N. do T.)
[17] Contração muscular súbita e involuntária, devida à descarga patológica de um grupo de células nervosas, que ocorre especialmente nas mãos e nos pés. (N. do T.)
[18] Tipo de transtorno da velocidade do pensamento, promovendo a lentidão dos processos psíquicos e intelectuais. (N. do T.)
[19] Que se assemelham à catalepsia (estado no qual o paciente conserva seus membros em uma posição que lhe foi dada por terceiros). (N. do T.)

— . — .1932 | Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade

[ De quelques mécanismes névrotiques dans la jalousie, la paranoïa et l’homosexualité ]

Tradução realizada por Jacques Lacan [1901-1981] do artigo “Über einige neurotische Mechanismen bei Eifersucht, Paranoia und Homosexualität”, publicado por Sigmund Freud [1856-1939] no ano de 1922. Trata-se do primeiro — e, até onde se tem notícia, único — texto de Freud integralmente traduzido e publicado por Lacan. De modo a facilitar o cotejo de alguns termos fundamentais, ao longo desta tradução brasileira os vocábulos apresentados entre colchetes dizem respeito à versão francesa e ao original alemão, respectivamente, da seguinte maneira: [tradução lacaniana | original freudiano ].

Revue française de psychanalyse, 1932, vol. V, n. 3, pp. 391-401

Internationale Zeitschrift Psychoanalyse, 1922, vol. VIII, n. 3, pp. 249-258

A | O ciúme pertence a estes estados afetivos que se podem classificar, assim como se faz com a tristeza [tristesse|Trauer],[1] como estados normais. Quando ele parece faltar no caráter e na conduta [conduite|Benehmen] de um homem, é justificado concluir que sucumbiu a um forte recalcamento [refoulement|Verdrängung], e desempenha na vida inconsciente um papel ainda maior. Os casos de ciúme anormalmente reforçado, com os quais a análise lida, mostram-se triplamente estratificados. Essas três camadas ou graus do ciúme merecem as denominações de:

1 | ciúme de concorrência, ou ciúme normal;
2 | ciúme de projeção;
3 | ciúme delirante.

Sobre o ciúme normal há pouco a dizer do ponto de vista da análise. É fácil ver que ele é composto essencialmente pela tristeza ou dor em acreditar que o objeto amado está perdido, bem como pela ferida narcísica, até onde ela se deixa isolar da anterior; estende-se ainda aos sentimentos de hostilidade contra o rival preferido, e, em maior ou menor medida, à autocrítica que quer imputar ao próprio eu [moi|Ich] do sujeito[2] a responsabilidade pela perda amorosa. Esse ciúme, ainda que o denominemos normal, nem por isso é racional — quero dizer, oriundo de situações [situations|Beziehungen][3] atuais; comandado pelo eu consciente, e só por ele, consoante a relações [relations|Verhältnissen][4] reais. Ele, com efeito, se enraíza profundamente no inconsciente; prolonga as primeiríssimas tendências [tendances| Regungen][5] da afetividade infantil e remonta ao complexo de Édipo (392) e[6] ao complexo fraternal, que são do primeiro período sexual. Resta digno de nota que ele seja vivido por muitas pessoas de um modo bissexual; quero dizer que, no homem, para além da dor em relação à mulher amada e o ódio contra o rival masculino, também uma tristeza — que se deve a um amor inconsciente pelo homem — e um ódio contra a mulher — vista como rival — agem nele para reforçar o sentimento. Sei de um homem que sofria muito fortemente de acessos de ciúme, e que, conforme ele dizia, atravessava os mais árduos tormentos em uma consciente substituição imaginativa à mulher infiel. A sensação, que ele então experimentava, de estar privado de todo e qualquer recurso;[7] as imagens que encontrava para o seu estado — retratando-se entregue, feito Prometeu, à voracidade do abutre, ou jogado em um ninho de serpentes acorrentado —, ele próprio as relacionava à impressão deixada por várias agressões homossexuais que havia sofrido quando menino.

O ciúme do segundo grau, ciúme de projeção,[8] provém, tanto no homem como na mulher, da própria infidelidade do sujeito,[9] realizada na vida, ou de impulsos [impulsions|Antriebe] à infidelidade que caíram no recalcamento. É um fato de experiência cotidiana que a fidelidade, sobretudo a que se exige no casamento, só se mantém à custa de uma luta contra constantes tentações. E, no entanto, aquele que as nega em si sente a pressão por elas exercidas com tamanha força que irá inclinar-se a adotar um mecanismo inconsciente para se aliviar. Ele atingirá esse alívio — digo, a absolvição da sua consciência — projetando os seus próprios impulsos à infidelidade para a parte oposta, a quem ele deve fidelidade. Esse potente mote pode então se servir dos dados imediatos da observação [données immédiates de l’observation|Wahrnehmungsmaterials][10] que dão a ver as tendências inconscientes de mesma sorte da outra parte, e ainda encontraria justificativas na reflexão de que o parceiro ou a parceira muito provavelmente não vale muito mais do que a própria pessoa.[11]

Os costumes sociais deram um jeito nesse comum estado de coisas com muita sabedoria, dando certa margem ao gosto da mulher casada em agradar e à queda do marido pela conquista. Através dessa licença, tende-se a drenar a irreprimível tendência [tendance|Neigung][12] à infidelidade e a torná-la inofensiva. A convenção estabelece que as duas partes (393) não devem, mutuamente, levar em conta esses passinhos miúdos em direção à infidelidade; e acontece, no mais das vezes, que o desejo [désir|Begierde] provocado por um objeto estranho [étranger|fremd] se sacie — em um repatriamento [retour au bercail|Rückkehr] à fidelidade — com o objeto que é o seu. Mas o ciumento não quer reconhecer essa tolerância convencional; ele não acredita que haja parada nem volta nessa via, uma vez que ela tenha sido tomada. Nem que esse jogo social, que é o próprio “flerte”, possa ser uma garantia contra a realização da infidelidade. No tratamento de um ciumento como esse, deve-se se abster de discutir os dados de fato nos quais ele se apoia; só se pode visar a determinação de que ele os aprecie de outro modo.

O ciúme que tem origem em uma projeção como essa já tem quase um caráter delirante, mas ele não se opõe ao trabalho analítico que revelará as fantasias [fantasmes|Phantasien] inconscientes da própria infidelidade do sujeito.[13]

É pior com o ciúme da terceira espécie, ciúme verdadeiramente delirante.[14] Ele também vem de tendências [tendances|Strebungen] à infidelidade reprimidas [réprimées|verdrängte], mas os objetos de suas fantasias são de natureza homossexual. O ciúme delirante responde a uma homossexualidade “fermentada” [tournée à l’aigre|vergorenen][15] e tem o seu lugar inteiramente designado entre as formas clássicas da paranoia. Tentativa de defesa contra uma tendência homossexual demasiadamente forte, ela se poderia deixar circunscrever (no homem) por esta fórmula: “Eu[16] não o amo, quem o ama é ela”.[17]

Em um dado caso de delírio de ciúme cumpre esperar ver o ciúme tirando a sua fonte do conjunto dessas três camadas, nunca somente da terceira.

B | A paranoia – Por razões conhecidas, os casos de paranoia subtraem-se, no mais das vezes, ao exame analítico. Contudo, nesses últimos tempos pude tirar, do estudo intensivo de dois paranoicos, algo que para mim era novo.

O primeiro caso foi o de um jovem que apresentava, plenamente desabrochada, uma paranoia de ciúme cujo objeto era a sua esposa, de uma fidelidade acima de qualquer reparo. Ele estava saindo de um período tempestuoso no qual havia sido implacavelmente dominado (394) pelo seu delírio. Quando o vi, ainda apresentava acessos [accès|Anfälle] bem isolados que duravam vários dias, e, ponto interessante, principiavam regularmente no dia seguinte a um ato sexual — que se dava, aliás, de modo satisfatório para ambas as partes. Está-se no direito de concluir disso que, a cada vez, depois de ser saciada a libido heterossexual, o componente homossexual com ela despertado achava por onde expressar-se através do acesso de ciúme.

O doente tirava os fatos, de cujos dados se valia o seu acesso, da observação dos menores sinais por onde, para ele, o coquetismo plenamente inconsciente da mulher se denunciava, ali onde nenhum outro teria visto nada. Ora ela havia roçado a mão, por descuido, no senhor que estava ao lado; ora havia pendido demais o rosto em direção a ele e lhe havia dirigido um sorriso mais familiar do que se estivesse só com o marido. Para todas essas manifestações do inconsciente dela ele mostrava uma atenção extraordinária e era bom em interpretá-las com rigor, de modo que, para dizer a verdade, ele estava sempre com a razão e ainda podia invocar a análise para confirmar o seu ciúme. Na verdade, a sua anomalia reduzia-se ao fato de que fazia incidir sobre o inconsciente de sua mulher uma observação demasiado aguda e que atribuía a isso muito mais importância do que ocorreria a qualquer outro atribuir.

Lembremos que os paranoicos perseguidos comportam-se de forma totalmente análoga. Eles também não reconhecem em outrem nada de indiferente e, em seu “delírio de relação”, pleiteiam os menores indícios que os outros, desconhecidos [étrangers|Fremden], lhes dão. O sentido desse delírio de relação [relation|Beziehung] é precisamente que eles esperam de todos os desconhecidos algo como o amor, mas os outros não lhes mostram nada parecido: riem na presença deles, agitam as suas bengalas e até cospem no chão quando eles passam — e aí está, realmente, algo que não se faz quando se tem, por quem está perto, o menor interesse amistoso. Só se faz isso quando essa pessoa é totalmente indiferente, quando se pode tratá-la como o ar ambiente; e o paranoico, quanto ao intrínseco parentesco dos conceitos de “desconhecido” e de “hostil”,[18] não está errado ao sentir uma indiferença como essa, em resposta à sua exigência amorosa, na forma de uma hostilidade.

Suspeitamos, agora, que talvez seja insuficiente a nossa descrição da conduta [conduite|Verhalten][19] dos paranoicos, tanto do ciumento quanto do (395) perseguido, quando dizemos que eles projetam para fora, no outro, aquilo que se recusam a ver em seu foro interior.

Decerto é o que fazem, mas através desse mecanismo eles não projetam, por assim dizer, nada no ar;[20] não criam coisa onde não tem, mas deixam-se, isso sim, guiar pelo seu conhecimento do inconsciente, deslocando para o inconsciente de outrem essa atenção que subtraem do seu próprio. O nosso ciumento reconhece a inconstância de sua mulher substituindo a sua; ao tomar consciência dos sentimentos dela, deformados e monstruosamente amplificados, ele tem sucesso em manter inconscientes os que lhe retornam. Tomando o seu exemplo como típico, concluiremos que a hostilidade que o perseguido descobre nos outros não passa do reflexo de seus próprios sentimentos hostis para consigo. Ora, sabemos que, no paranoico, é justamente a pessoa do seu sexo que ele mais amava que se transforma em perseguidor; com isso, surge a questão de saber de onde nasce essa interversão afetiva, e a resposta que se oferece a nós seria que a ambivalência sempre presente do sentimento fornece a base do ódio, e que a pretensão de ser amado, não sendo atendida, a reforça. Assim, a ambivalência do sentimento presta ao perseguido o mesmo serviço para se defender da sua homossexualidade que o prestado pelo ciúme ao nosso paciente.

Os sonhos do meu ciumento reservavam-me uma grande surpresa. Para dizer a verdade, eles nunca se mostravam simultaneamente à explosão do acesso — mas, no entanto, ainda sob o jugo do delírio —; eles estavam completamente livres de elemento delirante e davam a reconhecer as tendências [tendances|Regungen] homossexuais subjacentes sob um disfarce não menos penetrável que o habitual. Em minha modesta experiência com sonhos de paranoicos, eu não estava longe de admitir que, comumente, a paranoia não penetra no sonho.

O estado de homossexualidade nesse paciente podia ser captado à primeira vista. Ele não havia cultivado nem amizade, nem interesse social algum; impunha-se a impressão de um delírio ao qual seria incumbido a tarefa de desenvolver as suas relações [rapports|Beziehungen] com um homem, como que para permitir-lhe recuperar uma parte daquilo que havia deixado de realizar. A pouca importância do pai em sua família e um humilhante trauma homossexual em seus primeiríssimos anos de garoto haviam concorrido para reduzir a sua homossexualidade ao recalcamento e para barrar-lhe o caminho à sublimação. Sua juventude inteira fora dominada por (396) um forte apego [attachement|Bindung] à mãe. Dos vários filhos ele era o queridinho confesso da mãe, desenvolvendo para com ela um forte ciúme do tipo normal. Quando mais tarde decidiu-se por um casamento — decisão tomada sob o jugo do mote essencial de trazer riqueza à mãe — a sua necessidade de uma mãe virginal exprimiu-se em dúvidas obsessivas sobre a virgindade da noiva. Os primeiros anos do seu casamento não tiveram rastro algum de ciúme. Ele, então, foi infiel à mulher e engajou-se em um vínculo [liaison|Verhältnis] estável com uma outra. A partir do momento em que o temor de uma determinada suspeita lhe fez romper essas relações [relations|Beziehung][21] amorosas, eclodiu nele um ciúme do segundo tipo, ciúme de projeção, por meio do qual pôde impor silêncio às reprimendas atinentes à sua infidelidade. Ele logo se complicou com a entrada em cena de tendências [tendances|Regungen] homossexuais, cujo objeto era o sogro, formando toda uma paranoia de ciúme.

Meu segundo caso provavelmente não teria sido classificado, sem a análise, como paranoia persecutoria,[22] mas fui compelido a conceber esse jovem como um candidato a esse desfecho mórbido. Existia nele, nas relações com o pai, uma ambivalência de uma envergadura totalmente extraordinária. Era, por um lado, o rebelde confesso[23] que havia se desenvolvido, manifestamente e em todos os pontos, apartando-se dos desejos [désirs|Wünschen] e dos ideais de seu pai; por outro, em um plano mais profundo, era sempre o mais submisso dos filhos — aquele que, após a morte do pai, ficou com a consciência de uma dívida de coração, e proíbe a si o gozo [jouissance|Genuß] das mulheres. As suas relações [rapports|Beziehungen] reais com os homens colocavam-se abertamente sob o signo da desconfiança; com o seu vigor intelectual, sabia racionalizar essa reserva, saindo-se bem em ajeitar tudo de modo que seus conhecidos e amigos o enganassem e explorassem. O que ele me ensina de novo é que as clássicas ideias de perseguição podem subsistir sem encontrar no sujeito nem fé, nem anuência. Ocasionalmente, durante a análise, elas transpareciam, mas ele não lhes atribuía importância alguma; e, via de regra, delas zombava. Pode ser que o mesmo se passe em muitos casos de paranoia. As ideias delirantes que se manifestam quando uma afecção como essa eclode, talvez nós as consideremos neoproduções, ao passo que estão há muito constituídas.

Uma perspectiva primordial me parece ser a de que uma instância qualitativa, tal como a presença de certas formações neuróticas, na prática importa menos que essa instância quantitativa, a saber: (397) qual grau de atenção — ou, mais rigorosamente, qual ordem de investimento [investissement|Besetzung] afetivo[24] — esses temas podem concentrar em nós. A discussão do nosso primeiro caso, da paranoia de ciúme, nos havia incitado a atribuir esse valor à instância quantitativa, mostrando-nos que a anomalia consistia aí, essencialmente, neste superinvestimento afetado[25] das interpretações [interprétations|Deutungen] atinentes ao inconsciente alheio. Pela análise da histeria, conhecemos há tempos um fato análogo. As fantasias patógenas, as ramificações de tendências [tendances|Regungen] reprimidas [réprimées|verdrängte], são toleradas por muito tempo ao lado da vida psíquica [vie psychique|Seelenleben][26] normal e não têm eficácia morbífica,[27] até receberem, de uma revolução [révolution|Umschwung][28] da libido, uma sobrecarga[29] como essa; de saída, eclode então o conflito que conduz à formação do sintoma. Assim, somos cada vez mais levados, com o progresso do nosso conhecimento, a trazer para o primeiro plano o ponto de vista econômico. Gostaria também de levantar a questão de saber se essa instância quantitativa sobre a qual insisto aqui não tende a recobrir os fenômenos para os quais Bleuler e outros recentemente quiseram introduzir o conceito de “ação de circuito” [action de circuit|Schaltung].[30] Bastaria admitir que, a um acréscimo de resistência em uma direção do curso psíquico segue-se uma sobrecarga[31] de uma outra via, e com isso a sua entrada em circuito no ciclo que transcorre.

Um contraste instrutivo revelava-se em meus dois casos de paranoia quanto ao comportamento dos sonhos. Enquanto, no primeiro caso, os sonhos — tal como notamos — estavam livres de todo e qualquer delírio, o segundo doente produzia em grande número sonhos de perseguição, nos quais se podem ver pródromos e equivalentes para as ideias delirantes de mesmo conteúdo. O agente perseguidor — ao qual ele não podia se subtrair, a não ser com grande ansiedade [anxiété|Angst] — era, via de regra, um touro pujante ou algum outro símbolo da virilidade, que muitas vezes, ademais, ele reconhece, no próprio decorrer do sonho, como uma forma de substituição do pai. Uma vez relatou, em tom paranoico, um sonho de transferência muito característico. Ele viu que, em sua companhia, eu me barbeava; e observou, pelo odor, que eu me utilizava do mesmo sabonete que seu pai. Eu estaria agindo assim para obrigá-lo à transferência do pai para a minha pessoa. Na escolha da situação sonhada mostra-se, de forma impossível de ignorar, o pouco caso que o paciente faz de suas fantasias paranoicas e o pouco crédito que a elas atribui; pois uma observação cotidiana podia instrui-lo quanto ao fato de que, em geral, não é o caso de eu (398) me utilizar de sabonete de barbear, e que assim, nesse ponto, eu não oferecia apoio algum à transferência paterna.

Mas a comparação dos sonhos nos dois pacientes nos ensina que a questão por nós levantada — a saber, se a paranoia (ou toda e qualquer outra psiconeurose) podia penetrar até mesmo no sonho — repousa apenas em uma concepção incorreta do sonho. O sonho distingue-se do pensamento de vigília por poder acolher conteúdos (do domínio recalcado) que não têm o direito de se apresentar no pensamento de vigília. À parte isso, ele não passa de uma forma do pensamento, uma transformação da matéria pensável da pré-consciência, pelo trabalho do sonho e suas determinações. Ao próprio recalcado a nossa terminologia das neuroses não se aplica; não se pode qualificá-lo nem como histérico, nem como obsessivo, nem como paranoico. É, ao contrário, a outra parte da matéria submetida à elaboração do sonho; são os pensamentos pré-conscientes que podem ou ser normais, ou carregar em si o caráter de uma neurose qualquer. Os pensamentos pré-conscientes têm chances de ser resultados de todos esses processos patógenos em que reconhecemos a essência de uma neurose. Não se vê por que cada uma dessas ideias mórbidas não deveria sofrer a transformação em um sonho. Sem ir muito longe, um sonho pode também nascer de uma fantasia histérica, de uma representação [représentation|Vorstellung] obsessiva, de uma ideia [idée|Idee] delirante — quero dizer: apresentar, em sua interpretação, tais elementos. Em nossa observação de dois paranoicos, deparamo-nos com o fato de que o sonho de um é normal, enquanto o homem está em acesso; e que o do outro tem um conteúdo paranoico, quando o sujeito, ainda por cima, zomba de suas ideias delirantes. Assim, nos dois casos, o sonho acolhe aquilo que é, ao mesmo tempo, reprimido [réprimé|zurückgedrängt][32] quando da vida de vigília. Em tempo, isso não é necessariamente a regra.

C | A homossexualidade – O reconhecimento do fator orgânico da homossexualidade não nos exime de estudar os processos psíquicos que estão na sua origem. O processo típico, bem estabelecido em inúmeros casos, consiste no fato de que, no jovem, até então intensamente fixado à sua mãe, produz-se, alguns anos após o decorrer da puberdade, uma crise [crise|Wendung];[33] ele próprio se identifica com a mãe e procura, para o seu amor, objetos em que possa encontrar a si mesmo e que ele tenha a oportunidade de amar como a sua mãe o amou. Como vestígio desse processo, usualmente uma condição de atração se impõe por vários anos ao sujeito: que os objetos (399) masculinos tenham a idade em que, para ele, a reviravolta [bouleversement| Umwandlung][34] se deu. Aprendemos a conhecer os diversos fatores que, com uma força variável, provavelmente contribuem para esse resultado. Antes de mais nada, a fixação à mãe que entrava a passagem a um outro objeto feminino. A identificação à mãe permite sair dos laços [liens|Bindung][35] com ela, ao mesmo tempo que abre a possibilidade de permanecer fiel, em certo sentido, a esse primeiro objeto. Em seguida vem a tendência [tendance|Neigung][36] à escolha narcísica do objeto, que, de uma forma geral, é mais imediata e mais fácil de realizar que a conversão [conversion|Wendung][37] em direção ao outro sexo. Detrás dessa instância dissimula-se uma outra, de uma força totalmente particular; ou quiçá ela coincida com a primeira: o alto valor agregado ao órgão masculino e a impossibilidade de renunciar àquilo que existe no objeto amado. O desdém pela mulher, a aversão por ela (até mesmo o asco [dégoût|Abscheu] que ela provoca) relacionam-se, via de regra, com a descoberta — feita logo cedo — de que a mulher não possui pênis. Mais tarde descobrimos também, como um potente mote de uma escolha homossexual do objeto, a consideração pelo pai ou a angústia [angoisse|Angst][38] experimentada em relação a ele, quando a renúncia à mulher significa que assim se esquiva da concorrência com ele (ou com todas as pessoas do sexo masculino que desempenhem o seu papel). Esses dois últimos motes — o aferramento à condição peniana, assim como a evitação — podem ser atribuídos ao complexo de castração. Apego à mãe — narcisismo —, angústia [angoisse|Angst] de castração: instâncias — aliás, nada específicas — que localizamos até então na etiologia psíquica da homossexualidade. A isso associam-se ainda a influência de uma sedução, que pode responder por uma fixação precoce da libido, bem como a do fator orgânico, que favorece o papel passivo na vida amorosa.

Mas nós nunca acreditamos que essa análise da origem da homossexualidade fosse completa. Hoje estou em condições de indicar um novo mecanismo que leva à escolha homossexual do objeto, ainda que eu não possa precisar em que amplitude é preciso fixar o seu papel na constituição da homossexualidade extrema, daquela que é manifesta e exclusiva. A observação fez-me atentar para vários casos em que, na primeira infância, tendências [tendances|Regungen] ciumentas de uma força singular, oriundas do complexo materno, ergueram-se contra rivais, o mais frequentemente contra irmãos mais velhos. Esse ciúme levava a atitudes intensamente hostis e agressivas para com o grupo dos irmãos, atitudes que puderam chegar até (400) ao voto mortífero [voeu meurtrier|Todeswunsch],[39] mas não resistiram à ação do desenvolvimento. Sob a influência da educação — e também, certamente, em consequência do fracasso a que lhes fadava a impotência —, essas tendências acabavam recalcadas, invertendo-se[40] o sentimento, de modo que os precoces rivais eram agora os primeiros objetos homossexuais. Uma saída como essa do apego à mãe nos mostra relações [rapports|Beziehungen] — interessantes em mais de um ponto — com outros processos que nos são conhecidos. Ela é, primeiramente, a contraparte do desenvolvimento da paranoia persecutoria, na qual as pessoas primordialmente amadas tornam-se odiados perseguidores, ao passo que aqui os rivais odiados revelam-se objetos de amor. Além disso, ela figura uma exageração do processo que, da minha perspectiva, conduz à gênese individual dos instintos [instincts|Triebe] sociais.[41] Em ambos os casos existem, primeiramente, tendências [tendances|Regungen] invejosas e hostis que não conseguem encontrar satisfação, e os sentimentos de identificação — tanto de natureza amorosa quanto social — nascem como formas de reação contra os impulsos [impulsions|Impulse] agressivos recalcados.

Esse novo mecanismo da escolha homossexual do objeto, que brota da rivalidade superada [surmontée|überwundene] e do recalcamento das tendências [tendances|Neigung] agressivas,[42] acaba se misturando, em muitos casos, às determinações típicas que conhecemos. Não raro ficamos sabendo, pela história de vida dos homossexuais, que a viravolta [tournant|Wendung] ocorreu após a mãe ter elogiado outra criança, dando-a como exemplo. Eis aí o que despertou a tendência [tendance|Tendenz] à escolha narcísica do objeto e, depois de uma curta fase de ciúme agudo, transformou o rival em objeto amado. Aliás, o novo mecanismo distingue-se pelo fato de que, nesses casos, a transformação [transformation|Umwandlung] se produz no decorrer de anos bem mais precoces e que a identificação com a mãe passa para segundo plano. De igual modo, nos casos que observei, levou apenas a atitudes homossexuais que não excluíam a heterossexualidade e não acarretavam nenhum horror feminae.[43]

É bem conhecido o fato de que um número bastante grande de pessoas homossexuais caracteriza-se por um desenvolvimento particular dos instintos [instincts|Triebe] de tendência social[44] e por sua dedicação a interesses de utilidade pública. Ficar-se-ia tentado a oferecer a explicação teórica de que um homem que vê nos outros homens virtuais objetos de amor deve se comportar diferentemente quanto à (401) comunidade dos homens, se comparado a um outro que é forçado a encarar o homem primeiramente como rival em relação à mulher. Uma única consideração opõe-se a isso: é que no amor homossexual também há rivalidade e ciúme,[45] e que a comunidade dos homens compreende também esses possíveis rivais. Mas, abstendo-se dessa motivação especulativa, não é indiferente para as relações [rapports|Zusammenhang][46] da homossexualidade e do senso [sens|Empfinden] social o fato de que, efetivamente, não seja raro ver nascer a escolha homossexual do objeto de um domínio [maîtrise|Überwindung][47] precoce da rivalidade para com o homem.

Na concepção psicanalítica estamos habituados a conceber os sentimentos sociais como sublimações de comportamentos homossexuais quanto ao seu objeto. Para os homossexuais dotados de senso social, os sentimentos sociais não teriam operado o seu desprendimento da escolha primitiva[48] do objeto com integral felicidade.


INFORMAÇÕES ADICIONAIS | Em português brasileiro, o texto de Freud encontra-se traduzido diretamente do alemão nos seguintes volumes: S. Freud, Obras incompletas, vol. 5: “Neurose, psicose, perversão”. Trad. M. R. Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, pp. 193-216; S. Freud, Obras completas, vol. 15: “Psicologia das massas e análise do eu e outros textos”. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 209-224.



[1] Trauer, aqui traduzido por tristesse [tristeza] em todas as suas ocorrências, para além de uma dor diante de uma perda ou infortúnio — na chave do pesar e da consternação —, denota o tempo de profunda infelicidade que se segue à morte de alguém. É o termo utilizado por Freud em seu ensaio “Luto e melancolia” [Trauer und Melancholie], escrito em 1915 e publicado em 1917. (N. do T.)

[2] A expressão “do sujeito” [du sujet] não consta no original alemão. (N. do T.)

[3] Beziehung denota relacionamento, laço, relação. (N. do T.)

[4] Em tempo, um pequeno anacronismo: futuramente, na tentativa de especificar a “relação sexual”, Lacan irá se valer, para tanto, do termo Verhältnis — o qual, em sua acepção matemática, diz respeito à relação enquanto proporção, razão. Em francês, esse termo será associado por ele à palavra rapport, ao passo que relation será vinculado a Beziehung. (N. do T.)

[5] Para além de tendance, vale lembrar que Regung também é traduzido em francês pelo termo motion [moção]. (N. do T.)

[6] No original alemão, “ou” [oder], e não “e” [und]. (N. do T.)

[7] No original, Freud se vale apenas do termo Hilflosigkeit [desamparo], que Lacan traduz pela perífrase être privé de tout recours [estar privado de todo e qualquer recurso]. (N. do T.)

[8] No original alemão, “de projeção” está escrito com espaçamento entre as letras (dito Sperrdruck) —forma de destaque vertida pelo itálico tanto pela tradução francesa quanto por esta tradução brasileira. (N. do T.)

[9] A expressão “do sujeito” [du sujet] não consta no original alemão. (N. do T.)

[10] Ao pé da letra, “material perceptivo”. O termo “imediatos” [immédiates] não consta no original alemão. (N. do T.)

[11] Comparar com esta estrofe do canto de Desdêmona: “Chamei de enganador ? (sic) E ele disse o quê ? Se eu olho a moça, tu fitas o garoto” [Freud traz o verso de Shakespeare (Otelo, ato IV, cena 3) em inglês, com ligeiras modificações em relação ao texto original: “I called him thou false one, what answered he then? / If I court more women, you will couch with more men”, que traduzimos por “Chamei-o de falso, e o que respondeu? Se deitas com outros, c’outras flerto eu”]. (N. do T.)

[12] Neigung é “inclinação”, “caimento” — daí a ideia de tendência. (N. do T.)

[13] A expressão “do sujeito” [du sujet] não consta no original alemão, assim como o parágrafo não termina aqui: ele continua com o que, na tradução, é o parágrafo seguinte. (N. do T.)

[14] No original alemão, “delirante” [wahnhaft] está escrito com espaçamento entre as letras. (N. do T.)

[15] Freud não utiliza aspas no original. (N. do T.)

[16] No original alemão, “eu” [Ich] está escrito com espaçamento entre as letras. (N. do T.)

[17] Aproximar dos desenvolvimentos do caso Schreber: “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia [dementia paranoides]” [Lacan cita a tradução francesa, realizada por Marie Bonaparte e R. Loewenstein, publicada na Revue française de Psychanalyse, vol. V, n. 1. (N. do T.)]

[18] Cumpre lembrar que Freud havia escrito seu texto Das Unheimliche [O incômodo] em 1919, dialogando com o ensaio “Psicologia do incômodo” [Zur Psychologie des Unheimlichen], de Ersnt Jentsch (1906), explorando ali justamente a ideia de que: “o tradicional, habitual e ancestral é amado e digno de confiança para a maioria das pessoas; e que elas recebem o novo e o inabitual com desconfiança, desconforto e até hostilidade (misoneísmo). Isso é em grande parte esclarecido pela dificuldade em estabelecer, rápida e plenamente, as conexões de ideias que o objeto se esforça por fazer com o campo representacional anterior do indivíduo — ou seja, o domínio do intelecto sobre a coisa nova. […] Logo, é compreensível que à vinculação ‘antigo-conhecido-familiar’ corresponda o correlato ‘novo-estranho-hostil’”. (N. do T.)

[19] Lacan traduz por conduite [conduta] tanto Benehmen (no início do texto) quanto Verhalten. Cumpre notar, no entanto, que Benehmen é mais próximo da ideia de “modos” e “maneiras”, atribuíveis a seres animados, ao passo que Verhalten pode ser atribuído a objetos: por exemplo, quando dizemos que “o motor se comporta bem na estrada”. (N. do T.)

[20] Lacan cria um paralelismo, que não existe no original alemão, com a expressão “ar ambiente” — por ele utilizada um pouco antes para verter o Luft freudiano. Aqui Freud utiliza Blaue, que poderia ser traduzido por “escuro” — como em “um tiro no escuro” [ein Schuss ins Blaue] — ou “vazio”. (N. do T.)

[21] No original alemão, singular. (N. do T.)

[22] Em latim no original e na tradução. (N. do T.)

[23] Lacan cria um paralelismo, que não existe no original freudiano, com “queridinho confesso” — expressão por ele utilizada no parágrafo anterior para verter o erklärt [declarado] freudiano. Aqui Freud utiliza ausgesprochenst, que poderia ser traduzido, entre outros, por “o mais declarado”. (N. do T.)

[24] O termo “afetivo” [affectif] não consta no original alemão. (N. do T.)

[25] O termo “afetado” [affecté] não consta no original alemão. (N. do T.)

[26] Literalmente, “vida anímica”, e não psíquica [psychisches Leben]. (N. do T.)

[27] No original alemão, Freud se vale do termo pathogene, traduzido por Lacan como pathogène [patógeno] em todas as ocorrências, exceto nessa, em que ele opta pelo termo morbifique. (N. do T.)

[28] “Revolução” no sentido físico do termo: movimento circular ou elíptico no qual um corpo retorna à sua posição inicial. (N. do T.)

[29] Aqui Freud repete o termo “superinvestimento” [Überbesetzung], que Lacan opta por traduzir por surcharge, e não surinvestissement, como nas demais ocorrências. (N. do T.)

[30] Cf. Eugen Bleuler (1921) “Die Schaltungen”. In: Naturgeschichte der Seele und Ihres Bewusstwerdens: Eine Elementarpsychologie. Berlin/Heidelberg: Springer-Verlag, pp. 287-306. (N. do T.)

[31] Aqui Freud repete o termo “superinvestimento” [Überbesetzung], que Lacan opta por traduzir por surcharge, e não surinvestissement, como nas demais ocorrências. (N. do T.)

[32] O verbo zurückdrängen carrega a ideia de “empurrar de volta”, “repelir”. (N. do T.)

[33] Wendung denota “volta”, “virada”. A seguir, em outra ocorrência do termo, Lacan opta por traduzi-lo por “conversão”. (N. do T.)

[34] O termo Umwandlung, que pode ser traduzido como “conversão”, associa-se às ideias de modificação, transformação, reestruturação — como, por exemplo, “a conversão da luz solar em eletricidade” [die Umwandlung von Sonnenlicht in Elektrizität]. (N. do T.)

[35] No original alemão, singular. (N. do T.)

[36] Não está escrito com espaçamento entre as letras no original em alemão. (N. do T.)

[37] Cumpre notar que não se trata do conceito de “conversão” enquanto associado à histeria, para o qual Freud emprega o equivalente latino do termo germânico Umwandlung [conversão], a saber: Konversion (como em Konversionshysterie, “histeria de conversão”). (N. do T.)

[38] Cumpre notar que Angst — aqui traduzido por Lacan ora como “ansiedade”, ora como “angústia” — é também “medo”. (N. do T.)

[39] Literalmente, “desejo de morte”. (N. do T.)

[40] Freud torna a utilizar aqui o termo Umwandlung. (N. do T.)

[41] Ver “Psicologia das massas e análise do eu”, 1921 [Vol. VI das Obras completas ].

[42] No original alemão, singular. (N. do T.)

[43] Em latim no original e na tradução, a expressão significa “ginofobia” — literalmente, “horror à mulher”. (N. do T.)

[44] A construção freudiana é um pouco diferente: durch besondere Entwicklung der sozialen Triebregungen [por um desenvolvimento particular das moções pulsionais sociais] — ou “das tendências instintuais sociais”, seguindo as opções de tradução feitas por Lacan ao longo deste texto. (N. do T.)

[45] No original alemão os termos aparecem em posições invertidas: “ciúme e rivalidade” [Eifersucht und Rivalität]. (N. do T.)

[46] No original alemão, singular. (N. do T.)

[47] Na tradução de Lacan perde-se o paralelismo, presente no original freudiano, entre a “rivalidade superada” do parágrafo anterior e, aqui, a “superação precoce da rivalidade”. (N. do T.)

[48] O termo “primitiva” [primitif] não consta no original alemão. (N. do T.)

12.11.1931 | Distúrbios da linguagem escrita numa paranoica apresentando elementos delirantes de tipo paranoide (esquizografia)

[ Troubles du langage écrit chez une paranoïaque ]

Apresentação clínica realizada por Joseph Lévy-Valensi [1879-1943], Pierre Migault [1898-?] e Jacques Lacan [1901-1981] junto à Sociedade Médico-Psicológica de Paris, quando da sessão de 12 de novembro de 1931, presidida por Henri Claude [1869-1945]. Um resumo desta apresentação consta ainda na revista L’Encéphale, porém com título diferente: “Delírio e escritos de tipo paranoide numa doente de aspecto paranoico”.

 

Les Annales Médico-Psychologiques, 1931, vol. 2, n. 4, pp. 407-408

L’Encéphale, 1931, n. 10, p. 821

 

Resumo: Doente com 35 anos de idade, observada no serviço da Clínica nos últimos 10 meses, e cujos principais pontos clínicos é o seguinte:

1 | Tendências caracterológicas e comportamento social de paranoica;

2 | Delírio atual misto. Em primeiro plano, um delírio de tipo reivindicatório (reclamações e iniciativas reiteradas contra pseudoinjustiças cometidas numa prova prestada pela doente nove vezes sem sucesso); em segundo plano, elementos nitidamente paranoides, feitos de intuições, de inspirações, de sentimento de influência, de fenômenos alucinatórios extremamente elementares — todos esses fenômenos estando na base de uma construção delirante singularmente turva e difusa, com temas megalomaníacos e de perseguição;

3 | Uma  produção extremamente  ativa  de escritos, em sua maioria inteiramente incoerentes, contrastando com o caráter absolutamente normal da linguagem falada e a integridade das funções intelectuais elementares.

(408) O mecanismo desses escritos é constante, reproduzindo o do segmento paranoide do delírio: inspiração e interpretação secundária.

É a essa dissociação entre os discursos verbal e escrito, ao mecanismo preciso, que os autores pensaram poder reservar o termo “Esquizografia”.

Essa comunicação será publicada in extenso, como artigo original, num próximo número dos Annales Médico-Psychologiques.[1]

A doente apresentada escuta atentamente a discussão e interrompe frequentemente os oradores para contestar habilmente os dizeres deles e protestar contra a sua reputação de alienada.

Sra. THUILIER-LANDRY[2] – Nos dementes paranoides objetos da minha tese, o distúrbio da linguagem escrita havia sido anterior aos distúrbios da linguagem oral. Eles também não concordavam, ao contrário dela, com a anomalia das partes incoerentes de seus escritos que se lhes apontava. Tirante a ininteligibilidade das ideias escritas, havia distúrbios caligráficos. Vi frequentemente a incoerência oral e gráfica se manifestarem na sequência de um longo período e de mutismo reticente.

Sr. COURBON[3] – A dialética perfeitamente oportuna e a tensão do interesse pela discussão manifestadas pela doente perante nós não estão ao alcance de um demente. Ela tem incoerência em seu delírio, mas uma coerência perfeita em sua adaptação à situação. O epíteto de “paranoica” lhe conviria mais que o de “paranoide”.[4]

Sr. HENRI CLAUDE[5] – Ela escreve como uma paranoide, mas fala como uma paranoica. No mais das vezes, os escritos de nossos doentes são menos reveladores das suas psicoses que as suas linguagens. Disso decorre o fato de que muito frequentemente as pessoas a quem escrevem para protestar contra a internação acreditem que a privação de liberdade seja arbitrária.

Mas os modos da dissociação da linguagem são os mais variados, incidindo eletivamente ora num certo tema particular de discurso, ora em certas circunstâncias em que o discurso se dá.

Sr. LÉVY-VALENSI[6] – É precisamente por essa mescla de sinais de validez e de invalidez mental — que impede classificá-la nosologicamente — que essa doente é interessante. O termo “esquizografia” nos parece o melhor rótulo a dar ao distúrbio de seus escritos.


INFORMAÇÕES ADICIONAIS | A respeito do percurso de Lévy-Valensi com o tema da esquizografia, cf. J. Garrabé; É. Peneau, “De la schizographie dans les écrits de Joseph Lévy-Valensi”, Annales Médico-psychologiques, vol. 172, n. 5, jul. 2014, pp. 376-381. Disponível em: <www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0003448714001413>. A respeito da esquizofasia/esquizografia e seus efeitos na história da psicanálise através da teorização tardia de Jacques Lacan, bem como sua relação com a vanguarda poética e literária da época, cf. “Schizographie, l’avant-garde d’un symptôme”, L’Évolution Psychiatrique, vol. 82, n. 2, abr.–jun. de 2017, pp. 279-290. Disponível em: <www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0014385515001140>.



[1] Trata-se de “Escritos ‘inspirados’: esquizografia” (1931). In: Escritos avulsos. Trad. P. S. de Souza Jr. Disponível em: <escritosavulsos.com/1931/11/12/escritos-inspirados-esquizografia>.  (N. do T.)
[2] Lasthénie Thuillier-Landry [1879–1962], psiquiatra francesa que se doutorou em medicina no ano de 1916 com a tese Études sur les délires à évolution démentielle précoce (Paris: Jouvet & Cie), foi responsável pela fundação, em 1923, da Association Française des Femmes Médecins [Associação Francesa das Mulheres Médicas, cf. <affm-asso.fr>]. Era irmã da feminista Marguerite Pichon-Landry, bacharela em Direito que presidiu o Conselho Nacional de Mulheres Francesas entre os anos  1932 e 1954. (N. do T.)
[3] Paul Courbon [1879-1958], psiquiatra francês, formou-se em medicina na cidade de Lyon e trabalhou no manicômio de Amiens. É coautor, com Gabriel Fail [?-?], do trabalho que descreve a chamada síndrome de Fregoli: uma ilusão que consiste em acreditar que vários indivíduos, que não parecem uns com os outros, são a encarnação de uma pessoa só, que se disfarça ou muda de aparência. Cf. P. Courbon; G. Fail (1927) “Syndrome d’illusion de Frégoli et schizophrénie” [Síndrome de ilusão de Fregoli e esquizofrenia], Bulletin de la Société Clinique de Médecine Mentale, vol. 20, pp. 121-125. (N. do T.)
[4] Apesar da proximidade terminológica, cumpre diferenciar: em linhas gerais, o delírio paranoide trata-se de uma síndrome delirante característica da esquizofrenia — contando com mecanismos e temas múltiplos, não obedece a uma lógica interna e é hermético, turvo, não estruturado/sistemático —, ao passo que o delírio paranoico é característico do grupo das paranoias, apresentando uma semiologia bastante diferente — contando apenas com o mecanismo interpretativo e geralmente baseando-se numa intuição delirante, centra-se num só tema e é altamente sistematizado). (N. do T.)
[5] Henri Charles Jules Claude [1869-1945] foi discípulo do patologista francês Charles Bouchard [1837-1915] — este, por sua vez, discípulo de Jean Martin Charcot [1825-1893] — e assistente do neurologista Fulgence Raymond [1844-1910], na Salpêtrière. Entre os anos de 1922 e 1939, ocuparia a cátedra da clínica de doenças mentais do Hospital Sainte-Anne, em Paris, cumprindo um papel importante na introdução das teorias de Freud na França. A criação do primeiro laboratório de psicoterapia e psicanálise da Faculdade de Medicina de Paris deve-se ao seu trabalho. Entre seus alunos estiveram Jacques Lacan [1901-1981] e Henri Ey [1900-1977], que foi seu assistente. Membro titular da Academia Nacional de Medicina a partir de 1927, foi também membro da Legião de Honra. Debruçando-se sobretudo sobre a esquizofrenia, é a ele que se deve a cunhagem do termo “esquizose”. (N. do T.).
[6] O neuropsiquiatra Joseph Lévy-Valensi [1879-1943], que havia iniciado seu internato em 1899, tornou-se chefe clínico no ano de 1914 junto ao serviço de Jules Dejerine [1849-1917] na Salpêtrière. Condecorado pela Legião de Honra, concursou-se professor em 1929. Em Sainte-Anne, no serviço de Henri Claude [1869-1945], atuou na Clínica Médica de Doenças Mentais e do Encéfalo durante 13 anos. Seu Précis de psychiatrie [Compêndio de psiquiatria] conheceu três edições (1926, 1939 e 1948 [post mortem]), e foram de sua responsabilidade diversas comunicações junto à Sociedade Médico-Psicológica. Em 1939 é nomeado professor de História da Medicina. Em 1942, seu nome é proposto para a cátedra da Clínica de Doenças Mentais, apesar das interdições previstas no “estatuto dos judeus”, vigente durante o Regime de Vichy. Refugiado em Nice, é detido quando de uma operação realizada na estação de trem. Levado primeiramente a Drancy, foi deportado para Auschwitz, ali dando entrada no dia 23 de setembro de 1943. Morre nas câmaras de gás pouco depois, embora sua morte só tenha sido notificada quando do fechamento dos campos de concentração, em 1945. Em 2012, o novo prédio do Hospital Sainte-Anne, que abrigaria dali em diante a Clínica de Doenças Mentais, receberá seu nome em homenagem. (N. de T.)