[ Troubles du langage écrit chez une paranoïaque ]
Apresentação clínica realizada por Joseph Lévy-Valensi [1879-1943], Pierre Migault [1898-?] e Jacques Lacan [1901-1981] junto à Sociedade Médico-Psicológica de Paris, quando da sessão de 12 de novembro de 1931, presidida por Henri Claude [1869-1945]. Um resumo desta apresentação consta ainda na revista L’Encéphale, porém com título diferente: “Delírio e escritos de tipo paranoide numa doente de aspecto paranoico”.
Les Annales Médico-Psychologiques, 1931, vol. 2, n. 4, pp. 407-408
L’Encéphale, 1931, n. 10, p. 821
Resumo: Doente com 35 anos de idade, observada no serviço da Clínica nos últimos 10 meses, e cujos principais pontos clínicos é o seguinte:
1 | Tendências caracterológicas e comportamento social de paranoica;
2 | Delírio atual misto. Em primeiro plano, um delírio de tipo reivindicatório (reclamações e iniciativas reiteradas contra pseudoinjustiças cometidas numa prova prestada pela doente nove vezes sem sucesso); em segundo plano, elementos nitidamente paranoides, feitos de intuições, de inspirações, de sentimento de influência, de fenômenos alucinatórios extremamente elementares — todos esses fenômenos estando na base de uma construção delirante singularmente turva e difusa, com temas megalomaníacos e de perseguição;
3 | Uma produção extremamente ativa de escritos, em sua maioria inteiramente incoerentes, contrastando com o caráter absolutamente normal da linguagem falada e a integridade das funções intelectuais elementares.
(408) O mecanismo desses escritos é constante, reproduzindo o do segmento paranoide do delírio: inspiração e interpretação secundária.
É a essa dissociação entre os discursos verbal e escrito, ao mecanismo preciso, que os autores pensaram poder reservar o termo “Esquizografia”.
Essa comunicação será publicada in extenso, como artigo original, num próximo número dos Annales Médico-Psychologiques.[1]
A doente apresentada escuta atentamente a discussão e interrompe frequentemente os oradores para contestar habilmente os dizeres deles e protestar contra a sua reputação de alienada.
Sra. THUILIER-LANDRY[2] – Nos dementes paranoides objetos da minha tese, o distúrbio da linguagem escrita havia sido anterior aos distúrbios da linguagem oral. Eles também não concordavam, ao contrário dela, com a anomalia das partes incoerentes de seus escritos que se lhes apontava. Tirante a ininteligibilidade das ideias escritas, havia distúrbios caligráficos. Vi frequentemente a incoerência oral e gráfica se manifestarem na sequência de um longo período e de mutismo reticente.
Sr. COURBON[3] – A dialética perfeitamente oportuna e a tensão do interesse pela discussão manifestadas pela doente perante nós não estão ao alcance de um demente. Ela tem incoerência em seu delírio, mas uma coerência perfeita em sua adaptação à situação. O epíteto de “paranoica” lhe conviria mais que o de “paranoide”.[4]
Sr. HENRI CLAUDE[5] – Ela escreve como uma paranoide, mas fala como uma paranoica. No mais das vezes, os escritos de nossos doentes são menos reveladores das suas psicoses que as suas linguagens. Disso decorre o fato de que muito frequentemente as pessoas a quem escrevem para protestar contra a internação acreditem que a privação de liberdade seja arbitrária.
Mas os modos da dissociação da linguagem são os mais variados, incidindo eletivamente ora num certo tema particular de discurso, ora em certas circunstâncias em que o discurso se dá.
Sr. LÉVY-VALENSI[6] – É precisamente por essa mescla de sinais de validez e de invalidez mental — que impede classificá-la nosologicamente — que essa doente é interessante. O termo “esquizografia” nos parece o melhor rótulo a dar ao distúrbio de seus escritos.
INFORMAÇÕES ADICIONAIS | A respeito do percurso de Lévy-Valensi com o tema da esquizografia, cf. J. Garrabé; É. Peneau, “De la schizographie dans les écrits de Joseph Lévy-Valensi”, Annales Médico-psychologiques, vol. 172, n. 5, jul. 2014, pp. 376-381. Disponível em: <www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0003448714001413>. A respeito da esquizofasia/esquizografia e seus efeitos na história da psicanálise através da teorização tardia de Jacques Lacan, bem como sua relação com a vanguarda poética e literária da época, cf. “Schizographie, l’avant-garde d’un symptôme”, L’Évolution Psychiatrique, vol. 82, n. 2, abr.–jun. de 2017, pp. 279-290. Disponível em: <www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0014385515001140>.
[1] Trata-se de “Escritos ‘inspirados’: esquizografia” (1931). In: Escritos avulsos. Trad. P. S. de Souza Jr. Disponível em: <escritosavulsos.com/1931/11/12/escritos-inspirados-esquizografia>. (N. do T.)
[2] Lasthénie Thuillier-Landry [1879–1962], psiquiatra francesa que se doutorou em medicina no ano de 1916 com a tese Études sur les délires à évolution démentielle précoce (Paris: Jouvet & Cie), foi responsável pela fundação, em 1923, da Association Française des Femmes Médecins [Associação Francesa das Mulheres Médicas, cf. <affm-asso.fr>]. Era irmã da feminista Marguerite Pichon-Landry, bacharela em Direito que presidiu o Conselho Nacional de Mulheres Francesas entre os anos 1932 e 1954. (N. do T.)
[3] Paul Courbon [1879-1958], psiquiatra francês, formou-se em medicina na cidade de Lyon e trabalhou no manicômio de Amiens. É coautor, com Gabriel Fail [?-?], do trabalho que descreve a chamada síndrome de Fregoli: uma ilusão que consiste em acreditar que vários indivíduos, que não parecem uns com os outros, são a encarnação de uma pessoa só, que se disfarça ou muda de aparência. Cf. P. Courbon; G. Fail (1927) “Syndrome d’illusion de Frégoli et schizophrénie” [Síndrome de ilusão de Fregoli e esquizofrenia], Bulletin de la Société Clinique de Médecine Mentale, vol. 20, pp. 121-125. (N. do T.)
[4] Apesar da proximidade terminológica, cumpre diferenciar: em linhas gerais, o delírio paranoide trata-se de uma síndrome delirante característica da esquizofrenia — contando com mecanismos e temas múltiplos, não obedece a uma lógica interna e é hermético, turvo, não estruturado/sistemático —, ao passo que o delírio paranoico é característico do grupo das paranoias, apresentando uma semiologia bastante diferente — contando apenas com o mecanismo interpretativo e geralmente baseando-se numa intuição delirante, centra-se num só tema e é altamente sistematizado). (N. do T.)
[5] Henri Charles Jules Claude [1869-1945] foi discípulo do patologista francês Charles Bouchard [1837-1915] — este, por sua vez, discípulo de Jean Martin Charcot [1825-1893] — e assistente do neurologista Fulgence Raymond [1844-1910], na Salpêtrière. Entre os anos de 1922 e 1939, ocuparia a cátedra da clínica de doenças mentais do Hospital Sainte-Anne, em Paris, cumprindo um papel importante na introdução das teorias de Freud na França. A criação do primeiro laboratório de psicoterapia e psicanálise da Faculdade de Medicina de Paris deve-se ao seu trabalho. Entre seus alunos estiveram Jacques Lacan [1901-1981] e Henri Ey [1900-1977], que foi seu assistente. Membro titular da Academia Nacional de Medicina a partir de 1927, foi também membro da Legião de Honra. Debruçando-se sobretudo sobre a esquizofrenia, é a ele que se deve a cunhagem do termo “esquizose”. (N. do T.).
[6] O neuropsiquiatra Joseph Lévy-Valensi [1879-1943], que havia iniciado seu internato em 1899, tornou-se chefe clínico no ano de 1914 junto ao serviço de Jules Dejerine [1849-1917] na Salpêtrière. Condecorado pela Legião de Honra, concursou-se professor em 1929. Em Sainte-Anne, no serviço de Henri Claude [1869-1945], atuou na Clínica Médica de Doenças Mentais e do Encéfalo durante 13 anos. Seu Précis de psychiatrie [Compêndio de psiquiatria] conheceu três edições (1926, 1939 e 1948 [post mortem]), e foram de sua responsabilidade diversas comunicações junto à Sociedade Médico-Psicológica. Em 1939 é nomeado professor de História da Medicina. Em 1942, seu nome é proposto para a cátedra da Clínica de Doenças Mentais, apesar das interdições previstas no “estatuto dos judeus”, vigente durante o Regime de Vichy. Refugiado em Nice, é detido quando de uma operação realizada na estação de trem. Levado primeiramente a Drancy, foi deportado para Auschwitz, ali dando entrada no dia 23 de setembro de 1943. Morre nas câmaras de gás pouco depois, embora sua morte só tenha sido notificada quando do fechamento dos campos de concentração, em 1945. Em 2012, o novo prédio do Hospital Sainte-Anne, que abrigaria dali em diante a Clínica de Doenças Mentais, receberá seu nome em homenagem. (N. de T.)