12.11.1931 | Escritos “inspirados”: esquizografia

Écrits “inspirés”: schizographie ]

Artigo publicado por Joseph Lévy-Valensi [1879-1943], Pierre Migault [1898- ?] e Jacques Lacan [1901-1981] em dezembro de 1931, a partir de uma observação clínica apresentada na Sociedade Médico-Psicológica, sessão de 12 de novembro do mesmo ano, intitulada: “Troubles du langage écrit chez une paranoïaque présentant des éléments délirants du type paranoïde (schizographie)” [Distúrbios da linguagem escrita numa paranoica apresentando elementos delirantes do tipo paranoide (esquizografia)]

Les Annales Médico-Psychologiques, dezembro de 1931, vol. 2, n. 5 (“Mémoirs originaux”), pp. 508-522.

Republicado em: J. Lacan, De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité. Paris: Seuil, 1975, pp. 365-382.

Sob o título de “esquizofasia” alguns autores[1] enfatizaram o elevado valor atrelado a algumas formas mais ou menos incoerentes da linguagem, não somente como sintomas de alguns distúrbios profundos do pensamento, mas também como reveladoras de seu estágio evolutivo e de seu mecanismo íntimo. Em alguns casos esses distúrbios manifestam-se somente na linguagem escrita. Tentaremos apenas mostrar que material esses escritos oferecem a um estudo preciso dos mecanismos psicopatológicos. E isso a propósito de um caso que nos pareceu original.

Trata-se de uma doente, Marcelle C., 34 anos de idade, professora primária, internada há um ano na Clínica Psiquiátrica. Um ano e meio antes ela havia sido internada uma primeira vez, mas logo saiu a pedido do pai, pequeno artesão.

A Srta. C., à primeira vista, passa a impressão de ser uma pessoa que goza da integridade de suas faculdades mentais. Não se porta de modo estranho. Não se observa comportamento anormal em momento algum de sua vida no serviço. Protestos bastante vivos com relação à sua internação parecem, num primeiro momento, obviar todo e qualquer contato. Ele, no entanto, se estabelece.

Suas palavras são vivas, norteadas, adequadas, às vezes empolgadas. Induzimos, pelo método dos testes, a exploração objetiva da integridade de suas funções intelectuais, que parece total numa conversação contínua. Uma vez que os testes ordinários averiguando a atenção, a lógica e a memória mostraram-se bem abaixo de suas capacidades, (509) utilizamo-nos de exames mais sutis, mais próximos dos elementos sobre os quais incide a nossa apreciação cotidiana dos espíritos. São eles os “Testes de Intenção”: sentido aparente e real de uma palavra, de uma epigrama, de um texto etc. Ela sempre se mostrou satisfatória, rápida e até mesmo confortável.

Notemos que, por mais longe que se chegue com a sua confidência, o contato afetivo permanece incompleto. A todo instante uma resistência intrínseca se afirma. A doente pontifica, aliás, a todo e qualquer dito: “Não quero ser submissa a ninguém. Nunca quis aceitar a dominação de um homem” etc.

Quando chegamos ao ponto de fazer essa observação, a doente exteriorizou plenamente o seu delírio. Ele comporta vários temas, alguns típicos:

Um tema de reivindicação, fundamentado numa série de pretensos fracassos injustificados num concurso, manifestou-se através de uma série de iniciativas tomadas com uma estenia passional e da provocação de escândalos que levaram à internação da doente. Pelo dano dessa internação ela requere “vinte milhões de indenização: doze por privação de satisfações intelectuais e oito por privação de satisfações sexuais”.

Um tema de ódio concentra-se contra uma pessoa, a Srta. G., que ela acusa de lhe ter roubado a vaga que caberia a ela nesse concurso e de tê-la substituído no cargo que ela deveria ocupar. Esses sentimentos agressivos estendem-se a vários homens que ela conheceu num período recente e pelos quais parece ter tido sentimentos bastante ambivalentes — sem nunca ceder a eles, afirma ela.

Um tema erotomaníaco em relação a um de seus superiores na docência, o inspetor R. — atípico por ser retrospectivo, uma vez que o objeto do delírio havia falecido e a paixão mórbida não se revelara de forma alguma quando ele estava vivo.

Um tema “idealista” exterioriza-se com não menos frequência. Ela tem “o senso da evolução da humanidade”. Tem uma missão. É uma nova Joana d’Arc, mas “mais instruída e com um nível de civilização superior”. Foi feita para guiar os governos e regenerar os costumes. Seu negócio é “um centro ligado a coisas internacionais e militares de alto escalão”.

Em que bases esse delírio polimorfo se assenta? A questão permanece problemática, como se vai ver, e talvez os escritos nos ajudem a resolvê-la.

Quando de suas duas internações, a doente foi examinada na Enfermaria Especial. Os atestados do Dr. Logre[2] e do Dr. de Clérambault[3] ressaltam o caráter paranoico — “seja antigo, seja neoformado” — e admitem a existência de um automatismo mental.

É difícil precisar, tanto pelo interrogatório (por causa das interpretações retrospectivas) quanto pelo inquérito (pois da família obtivemos apenas informações epistolares), se o caráter paranoico manifestou-se na doente num momento anterior.

(510) Não obstante, o simples estudo do cursus vitæ[4] da doente parece fazer transparecer uma vontade de distinguir-se de seu meio familiar, um isolamento voluntário de seu meio profissional e uma falsidade do julgamento que se traduzem nos fatos. Foi bem nos estudos e não há nada a ressaltar até a sua saída da Escola Normal Primária, aos 21 anos. Mas conseguindo um emprego em 1917, quer que as coisas funcionem à sua maneira no serviço, já faz exigências e até suas próprias interpretações. Alguns anos depois, coloca na cabeça querer entrar para o professorado de uma escola de comércio. Reivindica, para tanto, uma mudança de cargo e depois uma licença; e, em 1924, abandona pura e simplesmente o cargo para ir se preparar para o concurso em Paris. Aqui ela ganha a vida como contadora, mas acredita-se perseguida em todos os lugares, mudando-se 12 vezes em quatro anos. O comportamento sexual ao qual aludimos e o caráter muito intrínseco das revoltas expressas pela doente vêm se somar à impressão que se isola do conjunto de sua história para fazer com que se admita uma anomalia evolutiva antiga da personalidade, de tipo paranoico.

Para fazer o balanço dos fenômenos elementares “impostos”, ou ditos “de ação externa”, foi preciso bastante paciência. Com efeito, não são apenas a reticência ou a confiança da doente que intervêm na dissimulação ou na divulgação deles. É o fato de que suas intensidades variam, de que eles evoluem em surtos e de que, com esses fenômenos, surge um estado de estenia de forma expansiva que, por um lado, certamente lhes concede suas ressonâncias convincentes para o sujeito e, por outro, impossibilitam — mesmo por razões de defesa — a sua ocultação.

A doente, durante a sua estada no serviço, apresentou um desses surtos, a partir do qual foram granjeadas as suas confissões: com isso ela nos esclareceu sobre os fenômenos menos intensos e menos frequentes que ela apresenta nos intervalos e sobre os episódios evolutivos passados.

Os fenômenos “de ação externa” reduzem-se aos mais sutis que estejam dados na consciência mórbida. Seja qual for o momento de sua evolução, nosso sujeito sempre negou energicamente ter ouvido “vozes”; ela nega, igualmente, toda e qualquer “captura”, todo e qualquer eco do pensamento, dos atos ou da leitura. Questionada por meio das formas enviesadas que a experiência com esses doentes nos ensina a empregar, ela diz nada saber dessas “ciências borradoras para as quais os médicos tentaram arrastá-la”.

Trata-se, quando muito, de hiperendofasia[5] episódica, de mentismo[6] noturno, de alucinações psíquicas. Certa vez a doente escuta nomes de flores ao mesmo tempo em que sente os seus cheiros. Noutra, numa espécie de visão interna, a doente se vê e se sente, ao mesmo tempo, acoplada numa postura bizarra com o inspetor R.

O eretismo genital é certo. A doente pratica assiduamente a masturbação. Devaneios acompanham-na e alguns são semioníricos. É difícil distinguir a alucinação genital.

(511) Em contrapartida, intensa e frequentemente ela tem sensações de influência. São “afinidades psíquicas”, “intuições”, “revelações de espírito”, sensações de “direção”. “É de uma grande sutileza de inteligência”, diz ela. Dessas “inspirações” ela diferencia as origens: Foch,[7] Clemenceau,[8] o avô dela, B. V., e sobretudo o seu antigo inspetor, M. R.

Por fim, entre esses dados impostos pela vivência patológica, é preciso classificar as interpretações. Em alguns períodos, palavras e gestos na rua são significativos. Tudo é armação. Os detalhes mais banais ganham um valor expressivo que concerne ao seu destino. Essas interpretações estão ativas atualmente, porém difusas: “Acreditei compreender que estão fazendo do meu caso uma questão parlamentar… mas é tão velado, tão difuso”.

Acrescentemos aqui algumas notas sobre o estado somático da doente. Elas são negativas, sobretudo. Cumpre reter: uma gripe em 1918; um cafeinismo evidente; um regime alimentar irregular; um tremor nítido e persistente nos dedos; uma hipertricose[9] marcada dos lábios; regras normais; demais aparelhos normais. Duas lipotimias[10] bem curtas no serviço, sem outro sinal orgânico além de uma hiperemia papilar[11] que durou oito dias. Bacilose[12] frequente na linhagem materna.

Falemos dos escritos, muito abundantes. Publicamos um apanhado deles e o mais integralmente possível. Os números que neles se encontram inseridos servirão quando dos comentários que vão se seguir, remetendo aos textos.

I | Paris, 30 de abril de 1931,

Querido papai, faz mais de quatro meses que estou trancada nesse sanatório de Sainte-Anne[13] sem que tenha podido fazer o esforço necessário para te escrever. Não que eu tenha alguma coisa de nevrálgico ou de tuberculoso, mas no ano passado te fizeram fazer essas besteiras, tirando proveito, desonestamente, da tua perfeita ignorância quanto à minha real situação [1] que sofri o jugo do proibido [2] pelo mutismo. Mas eu fiquei sabendo que o médico do meu caso, tamanha a morosidade, te advertiu a respeito da coisa grotesca e vejo que ele, pra não ter revés [3], pôs as coisas em perfeitas vias de melhor esclarecido [4] e de mais saúde de Estado [5].

Tope [6] interceptar os sons da lei pra me fazer o mais [7] próprio da terra, senão o mais [7] erudito. Meu sem zelo de fé [8] faz Mefisto passar [9] o mais [7] cruel dos homens mas é preciso ser sem macio nas suras para estar o mais pronto para a transformação. Mas é digno de inveja quem faz o jogo do maná do circo. A gente vê que etc.

(512) II | Paris, neste 14 de maio de 1931,

Senhor Presidente da República P. Doumer[14] veraneando nos pães de mel e nos trovadoces,

Senhor Presidente da República abarrotada de zelo,

Queria saber tudo pra fazê-lo o [15] mas rato então de poltrão e de canhão de ensaio [16] mas demoro muito pra intuir [17]. Maldades que se faz pros outros convém intuir que os meus cinco gansos de Vals[15] [18] são lá da perdizir e que o senhor é o melão da Santa virgem e de perdão de ensaio [19]. Mas tem que reduzir tudo aquilo que é termo da Auvérnia pois sem lavar as mãos n’água de mina é só mijazir na secola [20] e madhalena é sem tardar a ramera de todos esses recém-barbeados [21] para ser o melhor dos seus ourais [22] na voz é doce e a tez tem graça. Eu ia querer xingar de pamonhuda [23] sem qualquer detrimento de vida plenária e de graça se faz polícia judiciária [24]. Mas tem que embasbacar o mundo pra ser o maldito vil de barbanela e de sem cama se faz a pamonhona [25].

As barbas sujas são os fins eruditos do reino do emplastro trimento [26] mas tem que ficar quieto pra erudir [27] a bocó [28] e ela minar seco dentro se acuso sei o que eu fiz [29].

Ao londrear [31] sem morau [30], bancamos patavina [31] mas o rastro do orgulho é o mais alto Bentu que se possa minar daqui longos feitos e sem frescura. O risco de uma nação perversa é cumular nas costas de alguém e fazer do emplastro o mais magro arlequim enquanto que ele é detrimento a quem se quer, bondade redobrada a quem não se queria por si.

Concordo com o senhor quanto ao termo da glória do Senado. Curador [32] era da sua “foi minha mulher quem fez” [33] o mais erudito de todos mas o menos fingido.

Ao seu raspar do coro eu faço a uma é lassa [34] é boa precisamos tirá-la de si mas eu sou desse capacho que dá ameixa ao cento que eu fiz um cará murcho com esse fim caramujo. Mas tem que passar brenat[16] te faz o mais cheio de comadres, de compadre faz o bucho pra ficar fulo contigo.

Ao meu raspar do coro te faz a mais sozinha mas se ele é um empadão é pra alegria alhures e não nesses ourais daqui eles são muito baixos.

Ao senhor derribar eu faço a uma é lassa pra sempre lhe servir [35] e ver galgar os escalões a quem não pode escalar a tempo. É preciso, pra isso, ser amiga gentil do oráculo do Desejo [36] e se o senhor é fogo de sextosas [37] faço do senhor fogão sujo de rato, de rato descaído [38] e de trapo de capricho.

A empada é o cuidado que se tem com o adolescente quando faz os dentes com o jarrete de outro alguém [39]. Seu detrimento é um que não se extingue com sombrinhada [40]. Tem que segui-lo ao ensaio quando se o erudiu [41] e se o senhor quer vê-lo descaindo é só ir sem avisos avenida Campos-Elísios tão fulva excitação [42] da [80] patrulha dos melões de potência mas de falência cheio de jarrete [44].

Saúde mestre meu chilique [45] aos seus jarretes [46] e minha desenvoltura aos seus ourais mais altos [47].

Bastilha Marcelle [48], dito de outro modo Charlotte a Santa, mas sem mais marmelada faço do senhor mais alta cria da poedeira e dos seus bandos de amigos verdes pra me arrebatar o fruto de sentinela e não perverso. Eu sou o belo enxamos de humor de sem pinela e do Urubu, o pelotão de ensaio [49] e com a suja danar para se distinguir com todo rebaixo dos outros que querem ultrapassar o senhor porque melhor de fugir que de ficar.

Minhas deferências ao Senhor Sua Majestade Príncipe da Ironia francesa e se o senhor quer uma arrastada de asa faça o sucesso claro de Madhalena e de sem erro banca-se artesão para obsolecê-lo, bagageiro. Minha liberdade, suplico à sua honesta pessoa, vai ser melhor que a tabuada do duce[17] mais bem depauperado pelo guarda-sol militar.

Eu lhe honro, Senhor Bucho verde [50]. Ao senhor meus sabores de petulância e de primor para lhe honrar e agradar. Retroseira do Bom Deus para encharcá-lo de vergonha ou assumbrar de sucesso sólido e equilibrado. Brejo alto de peixes d’águas doces. Bedouce.[18]

III | Paris, neste 4 de junho de 1931,

Senhor Mericano [51] do pato e do pretório,

Se tem nomes bem mudos pra marcar poesia a sesta dos encapotados [52] oh !, mas digam só, se não é a Andradas [53]. Se celebrei Páscoa antes de Ramo [54], é que a minha Escola é de dar burdoada até o senhor entregar o serviço inteirinho. Mas se o senhor quer bancar o melro que ama ainda do ninho [55] e o tão bela é a área que é preciso majorá-la de fatos é porque o senhor é o um [58] da festa e porque precisamos todos chorar [56]. Mas se o senhor quer deste lugar aqui sem i a gente faz um negócio estranho é que combate é preocupação minha e que etc.

IV | Paris, 27 de julho de 1931,

Senhor Diretor Musical da Amica [61] treinado de estilo para peristilizar o cômputo Manguaço e Vigarista reunidos sem mais em Orgulho, Bretulho.[19]

Adoro de ver contar o fato da América em prantos, mas é tão doces fatos que se faz longa a vida dos outros e suave a sua a ponto, que é bem cem vez mais farto quem vive do acre e do falsário e faz sua digna existência da missiva comprida que já soou cem vez no bolso sem poder com esse “e” fazer um belo “me amanse” [62] eu sou cem vez mais frouxa que atrivida mas faça a fina escola e o senhor é o sol da América em prantos.

Mas ao cindir o tarde faz-se da agregada em todas as matérias e (514) se marinada é feito de bolseiros e bronzes a luzir tudo, é preciso fazer desse “ei Besta?” [63] um “olá, pimenta você nos deixa a vida tona e, sem você, eu estava pendendo dos cerros de São Clemente”.

A sorte “ó minha dama, o que se faz da fonti” te faz o pintor mestre do universo inteiro, e, se você é desses que fazem: poeta no xadrez nem responda, mas arre! é maduro no amuro[20] do outro mundo, você vai ser, eu sei Jesus no outro mundo ainda,[21] contanto que se inunde o pobre com o hábito do monge que o fez[22] [64].

Minha sorte é encapotá-lo se o senhor é o pateta que estou vendo que foi, e, se o pato-pra-ganso foi tubarão de ensaio [65] é que confiei, caduca que o senhor fosse mau [66].

Eu sou irmão do rato mau que te enrouca se você faz a rota da mãe do sabiá fuinha [67] e refeito de pinho, mas, se você é sol e poeta de feitos, eu banco o Revisto, desse lugar eu vou sair. Botei a pata no teu patavina. Tempestade é uma ova, tua cova compro eu Senhor [67].

Marcelle Ch. no xadrez é nada cortês com os poetas sem vez, mas deixa cem vez mais esquifes que mil patifes.

Genin.[23]

V | Em 10 de novembro pede-se à doente que escreva aos médicos uma carta curta em estilo normal. Ela logo o faz, em nossa presença e com sucesso. Pede-se a ela, em seguida, que escreva um post-scriptum seguindo as suas “inspirações”. Aqui está o que ela nos oferece:

Post-Scriptum inspirado.

Queria descobri-los os mais inéditos senhores na marmota do mico [78] mas estão aterrados porque os odeio a ponto de querê-los todos salvos [79]. Fé d’Arma e de Marna para ensafadá-los e fazê-los chorar o fardo alheio, o meu não [80].

Marna do diabo.[24]

Por fim, esta carta, verdadeira “arte poética”, onde a doente retrata o seu estilo:

VI | Paris, 10-12-1931

“Esse estilo que endereço às autoridades de passagem é o estilo que é preciso pra bem formar o alforje de Mouléra[25] e da sua patente de oficial pra rapar”.

Ele é minha defesa de Ordem e Direito.

Ele sustém o bem do Direito.

Ele rigorosa a pamonha mais sonsa e se diz conforme aos direitos dos pintores.

Ele carangueja a cegonha nos ourais do esplendor, para pilotá-la, como pajem,[26] na pamonha que a atravessa.

Ele é Marna e ducado de “e erro o senhor fez?”.

(515) Me é inspirado pela patente d’Eles na Assembleia maldita Genebra e Cia.

Deixo-o rápido e estrambólico.

Ele é derradeiro, o que mais tem juízo, por botar pamonha no lugar que é o dela.

Bem-estar de efeito pra rapar.

Marcel Siri.

O grafismo é regular do início ao fim da carta. Extremamente legível. De um tipo dito “primário”. Sem personalidade, mas não despretensioso.

Frequentemente o fim da carta preenche a margem. Nenhuma outra originalidade de disposição. Não há sublinhados.

Nenhuma rasura. O ato de escrever, quando o testemunhamos, realiza-se sem interrupção, como que sem pressa.

A doente afirma que aquilo que ela exprime lhe é imposto, não de uma forma irresistível — nem mesmo rigorosa —, mas de um modo já formulado. É, no sentido forte do termo, uma inspiração.

Essa inspiração não a perturba quando escreve uma carta em estilo normal na presença do médico. Ela advém, em contrapartida — e, ao menos episodicamente, é sempre acolhida —, quando a doente escreve sozinha. Mesmo numa cópia dessas cartas, destinada a ser guardada, ela não descarta uma modificação do texto que lhe é “inspirada”.

Interrogada sobre o sentido de seus escritos, a doente responde que são muito compreensíveis. Para os escritos recentemente compostos, na maioria das vezes ela oferece interpretações que aclaram o mecanismo de sua produção. Só nos damos conta disso quando nos submetemos a uma análise objetiva. Com Pfersdorff,[27] atribuímos a toda interpretação dita “filológica” um valor apenas de sintoma.[28]

No mais das vezes, entretanto, com relação a seus escritos — sobretudo quando são antigos — a postura da doente se decompõe assim:

a | Convicção absoluta do valor que eles têm. Essa convicção parece fundamentada no estado de estenia que acompanha as inspirações e que acarreta no sujeito a convicção de que elas devem — ainda que incompreendidas por ele próprio — exprimir verdades de ordem superior. Essa convicção parece estar atrelada à ideia de que as inspirações (516) são especialmente destinadas àquele a quem a carta é endereçada. “Ele deve compreender”. É possível que o fato de defender a sua causa junto a um ouvidor (é sempre esse o propósito dos seus escritos) desencadeie o estado estênico necessário.

b | Perplexidade, de sua parte, quanto ao sentido contido nesses escritos. É então que ela alega que as suas inspirações lhe são inteiramente alheias e que, com relação a elas, encontra-se no mesmo ponto que quem interroga. Por mais radical que essa perplexidade às vezes seja, ela deixa intacta a primeira convicção.

c | Uma profissão — comprobatória e talvez, até certo ponto, determinante — de não conformismo. “Eu faço a língua evoluir. É preciso sacudir todas essas velhas formas”.

Essa postura da doente em relação a seus escritos é idêntica à estrutura de todo delírio:

a | Estenia passional fundamentando-se na certeza de sentimentos delirantes de ódio, de amor e de orgulho. Ela é correlata a estados de influência, de interpretação etc.;

| Formulação mínima do delírio, tanto reivindicador quanto erotomaníaco ou reformador;

c |  Fundo paranoico de superestimação de si e de falsidade do julgamento.

Essa estrutura característica do delírio nos é assim revelada de forma exemplar.

Vejamos se a análise dos próprios textos nos esclarecerá a respeito do mecanismo íntimo dos fenômenos de “inspiração”.

Nossa análise incide sobre um conjunto de textos por volta de dez vezes mais extensos que esses que citamos.

Para conduzir essa análise sem ideias preconcebidas, seguiremos a divisão das funções da linguagem oferecidas por Head[29] a partir de dados puramente clínicos[30] (estudo de afásicos jovens).[31] Essa concepção está de acordo — notavelmente, aliás — com o que os psicólogos e os filólogos obtêm através de suas técnicas próprias.[32]

Ela se fundamenta na integração orgânica de quatro funções às quais correspondem quatro ordens de distúrbios efetivamente dissociados pela clínica:

(517) – distúrbios verbais ou formais da palavra falada ou escrita; – distúrbios nominais ou do sentido das palavras empregadas, isto é, da nomenclatura; – distúrbios gramáticos ou da construção sintática; – distúrbios semânticos ou da organização geral do sentido da frase.

A | DISTÚRBIOS VERBAIS

Alteração da forma da palavra, reveladora de uma alteração do esquema motor gráfico — ou então da imagem auditiva ou visual.

Numa primeira abordagem eles estão reduzidos ao mínimo. Contudo, encontram-se elisões silábicas [61] que incidem frequentemente — ponto digno de nota — na primeira sílaba [26] [32] [51]; assaz frequentemente o esquecimento de uma partícula, no mais das vezes de uma preposição: “por” ou “de” [9] etc. Acaso se trata daqueles curtos barramentos ou inibições do curso do pensamento que fazem parte dos sutis fenômenos negativos da esquizofrenia? O fato é ainda mais difícil de afirmar por conta de a doente dar dele interpretações delirantes. Ela suprimiu esse “e” ou aquele “de” por que ele teria botado a sua iniciativa a perder. Nos escritos ela faz alusão a isso [62].

Algumas fórmulas verbais, em contrapartida, são certamente dadas pelos fenômenos elementares impostos positivos, pseudoalucinatórios [63] — a doente especula com frequência sobre esses fenômenos.

O caráter imposto de alguns fenômenos surge com nitidez no fato de que as suas imagens são tão puramente auditivas que a doente lhes dá várias transcrições diferentes: a uma ela assa [34], alma é lassa [37], que se escreve ainda “ao me laça” num poema que nós não citamos. De igual maneira: “dama ainda o sabiá fuinha” [55] “da mãe do sabiá fuinha” [67]. As denegações da doente, fundamentadas na diferença do sentido, não podem anular o fato, mas vêm, ao contrário, reforçar o seu valor.

Podemos, com isso, nos perguntar se algumas estereotipias que retornam com insistência numa mesma carta ou em várias não têm a mesma origem: na carta I, o “de Estado” [5]; na carta II, o “de ensaio” [16] [19] [49] [65] que se liga regularmente a palavras terminadas em –ão,  nos moldes de “balão de ensaio”; em várias cartas, a “tão fulva excitação” [42] [60]. Também podemos nos perguntar o mesmo para toda uma série de estereotipias que aparecem no texto com um quê de absurdidade particularmente pobre, que, diríamos, “cheiram” a ruminação (518) mental[33] e delírio. Eis aí uma discriminação de ordem estética que, no entanto, não tem como deixar de impactar alguém.

Os neologismos, entretanto, parecem de uma origem diferente em sua maioria. Apenas alguns — como “londrar, londrear” [31] — aparentam os tipos neológicos que a alucinação nos fornece. São raros. Em sua maioria, devemos situá-los entre os distúrbios nominais.

B | DISTÚRBIOS NOMINAIS

As transformações do sentido das palavras parecem vizinhas dos processos de alteração estudados pelos filólogos e linguistas na evolução da língua comum. Elas se dão, como eles, por contiguidade à ideia expressa e também por contiguidade sonora ou, mais exatamente, parentesco musical de palavras; a falsa etimologia do tipo popular resume esses dois mecanismos: desse modo, a doente emprega “insoso” com o sentido de “sovina”. Criou uma família com as palavras “município” e “matrimoniar”, de onde ela tira: “matrimúnio” e o neologismo “municiniar”.

O sentido é também transformado segundo o mecanismo normal da extensão e da abstração, como os jarretes ([39] [44] [46] etc.) frequentemente evocados — palavra à qual a doente dá o seu sentido próprio e também, “por extensão”, o de luta, marcha, força ativa.

Mecanismos de derivação regulares produzem os neologismos “erudir” ([27] [41]); “enigmar”; “oural” ([22] [47]) — formado como “roseiral” e muito frequentemente empregado com o sentido de negócio que produz ouro — e “sextosas” [37], que designa o que se relaciona com um curso que ela fazia às sextas-feiras etc.

Outras palavras são de origem dialetal, local ou familiar: cf. [28], mas também “Ramo”[34] para o “Domingo de Ramos” [54]; a palavra “bisca” para dizer “malvado” e as palavras “pamonha”,[35] de onde derivam “pamonhuda” [23] e “pamonhona” [25], que são xingamentos que designam sempre a sua principal inimiga, a Srta. G…

Por fim, notar o uso de palavras truculentas: os encapotados [52], os ensafadados, etc…

C | DISTÚRBIOS GRAMÁTICOS

Pode-se observar, após exame, que a construção sintática é quase sempre respeitada. A análise lógico-formal é sempre possível com a condição de se admitir a substituição de toda uma frase no lugar de um substantivo. Como no exemplo seguinte [56]: “Mas se o senhor quer bancar dama ainda o sabiá fuinha e o / tão bela é a área que é preciso majorá-la de fatos /, é porque o senhor é o um da festa e porque precisamos todos chorar”. Os dois (519) sinais // isolam a frase fazendo a função de substantivo. Essa construção é muito frequente ([15] [24] [25] [29] [33] [73]). Às vezes, trata-se de adjetivos ou de fórmulas adjetivas empregadas substantivamente ([4] [8] [17] [21]), ou simplesmente de um verbo na 3ª pessoa: “o levara”, “o descascara”, “o leva rir”.

Essa forma dá, primeiro, a ilusão de uma ruptura do pensamento; vemos que ela é totalmente o contrário, visto que a construção é retomada depois que a frase, de certo modo entre parênteses, é consumada.

Em passagens bem mais raras, o vínculo sintático é destruído e os termos formam uma sequência verbal organizada pela associação assonante de tipo maníaco ([60] [73]): ou, através uma ligação descontínua do sentido, fundamentada na última palavra de um grupo que é retomada como primeira do grupo seguinte — procedimento parente de algumas brincadeiras infantis, tal como em [20] —; ou ainda esta fórmula: “presteza aos sucessos doidos de dor, mas bucho no chão com honra chã” (carta não citada). Em parte, a fadiga condiciona essas formas, que são mais frequentes no final das cartas.

D | DISTÚRBIOS SEMÂNTICOS

São caracterizados pela incoerência que, de início, parece total. Trata-se, na realidade, de uma pseudoincoerência.

Algumas passagens mais penetráveis nos permitem reconhecer os traços característicos de um pensamento em que a afetividade predomina.

Em primeiro lugar, essencialmente, a ambivalência. “Sofri”, diz ela, “o jugo do proibido [2]” para significar exatamente o “jugo da opressão”, por exemplo. Mais nitidamente ainda: “Os senhores estão aterrados porque eu os odeio a ponto de querê-los todos salvos” [79]. Cf. também [80].

Eis aqui os exemplos de condensação e de aglutinação de imagens. Numa carta não publicada: “Eu lhe serei baita precursor”, escreve ela ao seu deputado, “caso me livre desse inferno”. O que quer dizer que, para exprimir seu reconhecimento, ela o fará beneficiar-se dessas luzes especiais que fazem dela um precursor da evolução. Igualmente, aliás: “Eu lhe serei baita honesto caso queira proceder a uma detenção correta no ensino primário”.

O deslocamento e a projeção das imagens são não menos constatados depois de se interrogar a doente. Ainda que ela interprete (mais ou menos secundariamente, isso pouco importa) uma passagem incoerente como exprimindo uma calúnia que devem ter espalhado sobre ela, acontece de o discurso lhe atribuir, a ela mesma, a frase (520) incriminada. O inverso se produz com não menos constância. A noção da participação parece apagar aqui a do indivíduo. E essa tendência do seu pensamento poderia competir à experiência delirante da sensação de influência, se o uso do procedimento que assinalamos não fosse nitidamente irônico e não revelasse, assim, o seu dinamismo afetivo.

Testemunha disso é, ainda, a profusão de nomes próprios em seus escritos (vários seguidos, unidos pelo sinal de = para designar o mesmo indivíduo, por exemplo), de apelidos, e a diversidade e a fantasia das suas próprias assinaturas.

Notemos que a própria doente com frequência se qualifica no masculino [7].

Numa composição que pedimos a ela acerca de um assunto técnico que se esperava que ela conhecesse, ficou bem marcada a relação entre a falta de direção e de eficácia do pensamento e essa estrutura afetiva. Esse trabalho, mais ou menos suficiente em seu conteúdo geral, mostrava duas ou três vezes uma derivação do discurso, totalmente fora de propósito, e sempre na forma da ironia, da alusão, da antífrase. Essas formas, em que o pensamento afetivo acha normalmente por onde se exprimir nos enquadramentos lógicos, estavam ligadas ali à manifestação de um déficit intelectual que não se revelou nos testes, onde ela era passiva.

Não obstante, nem tudo nesses textos parece ser do foro da formulação verbal degradada de tendências afetivas. Uma atividade de jogo ali se revela, da qual não se deve ignorar nem a parte de intenção, nem a parte de automatismo. Os experimentos feitos por alguns escritores sobre um modo de escrita que eles chamaram de “surrealista”, e cujo método descreveram muito cientificamente,[36] mostram o grau de notável autonomia a que podem chegar o automatismos gráficos fora de toda e qualquer hipnose.[37]

Ora, nesses produções alguns enquadramentos podem estar fixados de antemão — como um ritmo de conjunto, uma forma sentenciosa[38] —, sem que se veja diminuído, por conta disso, o caráter violentamente disparatado das imagens que dali dimanam.

Um mecanismo análogo parece atuar nos escritos da nossa doente, para os quais a leitura em voz alta revela o papel essencial do ritmo. Ele frequentemente tem, por si só, uma potência expressiva considerável.

(521) O hexâmetro[39] encontrado a cada linha [66] é pouco significativo e está mais para um sinal de automatismo. O ritmo pode ser dado por um contorno sentencioso, que às vezes assume o valor de uma verdadeira estereotipia, tal como o esquema dado pelo provérbio: “Ao vencer sem perigo, triunfa-se sem glória”,[40] subjazendo mil vezes a cada fórmula aparentemente incoerente [31]. Um grande número de contornos próprios a alguns autores clássicos — a La Fontaine, muito frequentemente — arrimam o seu texto. O mais típico deles é a frase delirante que precede a referência [53] e que é calcada no célebre dístico de Hégésippe Moreau:

“Se é um nome doce afeito à poesia,
Ah !, me digam só, se não é o da Vulzia ?” [41]

Em vista desses mecanismos de jogos, é impossível não notarmos o valor poético evidente que, apesar de algumas falhas, certas passagens atingem. Por exemplo, as duas passagens seguintes:

Na carta I, que só pudemos trazer parcialmente, seguem-se quase que imediatamente ao nosso texto as seguintes passagens:

“Vê-se que o fogo da arte que se tem nas relvas da Sta. Glória bota África nos lábios da bela enfatigada”

e, dirigindo-se ainda ao pai:

“Crê que na tua idade deveria estar na volta do homem forte que, sem civilização, faz-se o mais entalho do remo e repousar sem sorrelfa no mais claro dos ofícios do homem que se vê talhar a pérola que ele fez e se dá um repouso do seu amante de feno”.

Cf. também: [39] [40] [50] [64] [67].

Ao cabo de nossa análise, constatamos ser impossível isolar na consciência mórbida o fenômeno elementar, psicossensorial ou puramente psíquico, que seria o núcleo patológico ao qual a personalidade que permaneceu normal reagiria. O distúrbio mental nunca está isolado. Aqui, vemos o mecanismo essencial assentar-se numa base dupla:

– um déficit intelectual, que, por mais sutil que seja, traduz-se nas produções intelectuais, na conduta, e fundamenta certamente a crença delirante;

– um estado de estenia passional que, diversamente polarizado em sentimentos de orgulho, de ódio ou de desejo, tem sua única raíz numa tendência egocêntrica.

(522) Esse estado emocional crônico é suscetível de variações conforme os períodos. Períodos longos, que revelam uma correlação clínica com a frequência dos fenômenos elementares de ação externa. Períodos curtos, que são determinados pela expressão escrita dos temas delirantes.

Nesses estados de exaltação, as formulações conceituais — sejam as do delírio ou dos textos escritos — não têm mais importância do que as letras intercambiáveis de uma canção em versos. Longe de motivarem a melodia, é ela que as sustenta e legitima eventualmente os seus contrassensos.

Esse estado de estenia é necessário para que os fenômenos ditos elementares tenham a consistência psicossensorial e acarretem o assentimento delirante que a consciência normal lhes recusa.

De igual maneira, nos escritos, apenas a fórmula rítmica está dada — a qual deve ser preenchida pelos conteúdos idéicos que se apresentarão. No dado estado de nível intelectual e de cultura da doente, as felizes conjunções de imagens poderão se produzir episodicamente para um resultado altamente expressivo. Mas, no mais das vezes, o que advirá serão os restolhos da consciência; palavras, sílabas, sonoridades obsedantes, “ladainhas”, assonâncias, “automatismos” diversos: tudo o que um pensamento em estado de atividade — isto é, que identifica o real — repele e anula por meio de um juízo de valor.

Tudo o que, dessa origem, se trama assim no texto, reconhece-se num traço que assinala o seu caráter patológico: a estereotipia. Às vezes esse traço é manifesto. Pode-se, noutras, apenas pressenti-lo. Sua presença nos basta.

Nada é, em suma, menos inspirado — no sentido do espírito — do que esse escrito sentido como inspirado. É quando o pensamento é curto e pobre que o fenômeno automático o suplementa. Ele é sentido como exterior porque suplementa um déficit do pensamento. Ele é julgado como válido porque é convocado par uma emoção estênica.

Parece-nos que essa conclusão, que tange aos problemas mais essenciais que o funcionamento patológico do pensamento nos traz, valia a análise fenomenológica minuciosa que apenas os escritos podiam nos permitir.


INFORMAÇÕES ADICIONAIS | A ata da observação clínica que deu origem a esse artigo pode ser encontrada em: Les Annales Médico-Psychologiques, 1931, vol. 2, pp. 407-408. Disponível em: <www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/medica/page?90152x1931x02&p=439>. A respeito do percurso de Lévy-Valensi com o tema da esquizografia, cf. J. Garrabé; É. Peneau, “De la schizographie dans les écrits de Joseph Lévy-Valensi”, Annales Médico-psychologiques, vol. 172, n. 5, jul. 2014, pp. 376-381. Disponível em: <www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0003448714001413>. A respeito da esquizofasia/esquizografia e seus efeitos na história da psicanálise através da teorização tardia de Jacques Lacan, bem como sua relação com a vanguarda poética e literária da época, cf. F. Hulak, “Schizographie, l’avant-garde d’un symptôme”, L’Évolution Psychiatrique, vol. 82, n. 2, abr.–jun. de 2017, pp. 279-290. Disponível em: <www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0014385515001140>. Cf. também: J. Chénieux-Gendron, “Jacques Lacan, L’Autre de André Breton”. In: É. Marty,  Lacan et la littérature. Paris: Éditions Manucius, 2005, pp. 27-48. [Em português: “Jacques Lacan, ‘O Outro’ de André Breton” (Trad. R. E. Franco), Manuscrítica, n. 29, 2015. Disponível em: <www.revistas.fflch.usp.br/manuscritica/article/view/2351>.



[1] C. Pfersdorff, “La schizophasie: les catégories du langage” [A esquizofasia, as categorias da linguagem], Travaux de la Clinique Psychiatrique de la Faculté de Médecine de Strasbourg, vol. 5, 1927, pp. 37-149; G. Teulié. “La schizophasie” [A esquizofasia], Les Annales Médico-Psychologiques, vol. 1, n. 2, fev. de  1931, pp. 113-124 [Disponível em: <www.biusante.parisdescartes.fr/histoire/medica/resultats/?cote=130135x1931x02&p=307&do=page> (N. do T.)].
[2] Benjamin-Joseph Logre [1883-1963], aluno do famigerado Ernest Dupré [1862-1921], era médico-chefe da Enfermaria Especial desde 1923, ano em que também começou a ocupar um posto de psiquiatra forense. (N. do T.)
[3] Gaëtan Gatian de Clérambault [1872-1934] é considerado, por muitos, o último e mais brilhante dos clássicos. Obteve, em 1905, o cargo de médico adjunto da Enfermaria Especial do Comando de Polícia, onde já era interno de Paul-Émile Garnier [1848-1905]. Com a morte de Ernest Dupré [1862-1921], que havia sido seu professor, torna-se médico-chefe da instituição. Lacan o considerava seu “único mestre em psiquiatria” (cf. C. M. Ramos Ferreira; J. Santiago [2014] Apresentação de pacientes: Clérambault, mestre de Lacan. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. 17, n. 2. São Paulo, junho de 2014. Disponível em: <dx.doi.org/10.1590/1984-0381v17n2a05>). Ademais, cumpre notar que Clérambault entendeu o presente artigo como sendo uma divulgação não autorizada das suas próprias ideias a respeito da paranoia, de modo que Lacan suprimirá o texto quando da reedição de sua tese de doutorado, onde figurarão outros de seus “Primeiros escritos sobre a paranoia”. (N. do T.)
[4] Do latim: “decurso da vida”. (N. do T.)
[5] Jules Séglas [1856-1939] — alienista hospitalar entre os anos de 1886 e 1921 e presidente da Sociedade Médico-Psicológica (1908) — vinha minorando, desde o ano de 1914, o aspecto sensório-motor do fenômeno alucinatório; aproximava-o, assim, ainda mais do delírio e, portanto, de certa psicogênse da alucinação. Anos depois, criticará sua primeira teoria da alucinação, baseada na excitação dos “centros nervosos” — teoria que, na época, já não sustentava mais a comparação com a clínica moderna da afasia. Com isso, a clínica da alucinação vai se articulando com a ideia de uma patologia da linguagem interna, e as alucinações psicomotoras acabam se equivalendo a uma exofasia (a linguagem interna se aliena do sujeito e o pensamento se articula quase que automaticamente em movimento). Séglas distingue isso da hiperendofasia, que seria o excesso da linguagem interna — que ele acredita estar mais próximo da auditivação e da perseguição. Cf. P. La Sagna, “Séglas et le système de l’Autre Méchant”, La cause freudienne, vol. 74, n. 1, pp. 201-221. Disponível em: <www.cairn.info/revue-la-cause-freudienne-2010-1-page-201.htm>. Cf. também: J. Séglas, “Hallucinations psychiques et pseudo-hallucinations verbales”, Journal de psychologie normale et pathologique, vol. 11, 1914. (N. do T.)
[6] De acordo com o alienista Philippe Chaslin [1857-1923], trata-se de um fluxo rápido e incontrolável de pensamentos e imagens que o sujeito não consegue interromper, tipicamente acompanhado de ansiedade e ocorrendo geralmente quando se está para dormir, causando insônia. (N. do T.)
[7] Ferdinand Foch [1851-1929] — comandante da Escola Superior Militar nomeado por Georges Clemenceau em 1907 — tornou-se comandante da Legião de Honra em 1913 e atuou de modo destacado na Primeira Guerra Mundial, encabeçando as forças da Tríplice Entente. (N. do T.)
[8] Georges Clemenceau [1841-1929] foi um médico francês que cedo se tornaria estadista, integrando a Assembleia Nacional. Atuando como jornalista, fundou o periódico La Justice [A justiça] e foi o responsável pela publicação do famigerado “J’accuse” [Eu acuso] de Émile Zola, em 13 de janeiro de 1898, no jornal L’Aurore [A Aurora], do qual era editor-chefe. Foi senador e primeiro-ministro, chefiando o país durante a Primeira Guerra Mundial. (N. do T.)
[9] Aumento da pilosidade, de caráter genético ou adquirido, em locais normalmente providos de pelos. (N. do T.)
[10] Perda de força muscular, porém sem perda de consciência, com conservação das funções respiratória e cardíaca. É acompanhada de palidez, suores frios, vertigens, zumbido nos ouvidos e a impressão de desmaio iminente. (N. do T.)
[11] Aumento da circulação sanguínea no ponto em que o nervo óptico entra no olho. (N. do T.)
[12] Infecção provocada por bacilos. (N. do T.)
[13] O Centro Hospitalar Sainte-Anne foi edificado num local com vocação assistencial desde o século XIII. Em seguida à Casa de Saúde de Margarida da Provença, esposa de Luís IX; e então, ao Sanitat Saint-Marcel, no século XV (destinado aos doentes por contágio), Ana de Áustria ordenou a construção, por volta de 1650, de um hospital que receberia o nome de Sainte-Anne [Sant’Ana]. Pouco utilizado num primeiro momento, o local foi transformado numa espécie de fazenda onde iam trabalhar os alienados do Hospital de Bicêtre, que ficava relativamente próximo. Em 1863, no entanto, Napoleão III decide criar ali um hospital psiquiátrico, designado por ele próprio como “asilo clínico”, uma vez que se destinaria a ser um local de tratamento, de pesquisa e de ensino. O manicômio  é inaugurado no primeiro dia do ano de 1867, e seu primeiro paciente dará entrada em 1º de maio. Em 1922, havia sido criado ali, por Édouard Toulouse [1865-1947], um centro de profilaxia mental: o primeiro serviço livre, isto é, no qual os doentes não ficam internados. (N. do T.)
[14] Trata-se de Joseph Athanase Gaston Paul Doumer [1857-1932], que exerceu seu mandato como presidente da França entre 13 de junho de 1931 e o seu assassinato, em 7 de maio de 1932. Ele havia vencido as eleições presidenciais no dia 13 de maio; um dia antes, portanto, da escrita da carta pela paciente em questão. (N. do T.)
[15] Possivelmente a comuna de Vals-près-le-Puy. (N. do T.)
[16] Brenat é uma comuna francesa situada na Auvérnia. (N. do T.)
[17] Cumpre notar que alguns anos antes, em 1925, Benito Amilcare Andrea Mussolini [1883-1945] havia se tornado ditador na Itália, carregando o título de duce [líder]. (N. do T.)
[18] Pra além da rima em “eaux douces” [águas doces] e “Bedouce“, cumpre lembrar que “Bedouce” é o sobrenome de outro político francês. Albert Bedouch — conhecido como Albert Bedouce [1869-1947] — foi prefeito de Toulouse e, na época, exercia o cargo de deputado pelo departamendo de Alto Garona. (N. do T.)
[19] No original, “Breteuil”: comuna francesa da região da Normandia. (N. do T.)
[20] O vocábulo “amuro” [amur] — formação considerada neológica na qual ressoa o termo “amor” [amour] — é retomado por Lacan no seminário Mais, ainda: “O amuro é o que aparece em signos bizarros no corpo. São esses caracteres sexuais que vêm do além, desse local que temos acreditado podermos ocular no microscópio sob a forma de germe — a respeito do qual farei vocês notarem que não se pode dizer que seja a vida, pois aquilo também carrega a morte, a morte do corpo; que isso o reproduz, que isso o repete, que é daí que vem un corps / encore [um corpo, mais ainda]” (J. Lacan [1972-73] em O seminário, livro 20: Mais, ainda. Trad. MD Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 13; trad. modificada). Em todo caso, vale ressaltar que, no campo dos estudos da linguística diacrônica, reconhece-se a presença da forma amur na linha histórica que culmina no termo francês moderno — de modo que o neologismo da paciente poderia ser entendido, de certa maneira, também como um arcaísmo. Cf. Christian Schmitt, “Cultisme ou Occitanisme? Étude sur la provenance du français amour et ameur“, Romania, 1973, vol. 376, pp. 433-462. Disponível em: <www.persee.fr/doc/roma_0035-8029_1973_num_94_376_2386>. (N. do T.)
[21] Cumpre notar aqui, logo na sequência do aparecimento do termo amur [amuro], a presença de encore [ainda; mais, ainda] — justamente a palavra que nomeará o Seminário 20, quatro décadas mais tarde, em que amur será retomado. (N. do T.)
[22] Aqui ecoa o provérbio que diz que “o hábito não faz o monge” [l’habit ne fait pas le moine]. (N. do T.)
[23] Possível referência ao lago Genin, situado na Cordilheira do Jura, na região de Auvérnia-Ródano-Alpes. O fato de a cordilheira ser coberta majoritariamente por pinheiros nos faz cogitar a possibilidade de que o “refeito de pinho” — escrito pela paciente linhas antes — possa lhe dizer respeito. (N. do T.)
[24] Vale lembrar que Marne au diable [Marna do diabo] evoca La mare au diable [O charco do diabo], o título de um romance campestre da autoria de George Sand [1804-1876] e que havia sido publicado em 1846. O livro conta a história de Germain, um jovem viúvo que, após cair num luto profundo com o falecimento da esposa — que havia deixado o marido e três filhos —, procura se casar novamente, encorajado pelo sogro. Ao saber que havia uma viúva numa região vizinha (Catherine Guerin) que também estava procurando se casar de novo, Germain vai ao seu encontro acompanhado de Marie — uma moça cuja guarda lhe foi confiada e irá trabalhar numa fazenda perto do local onde mora a viúva — e de um dos filhos, que embarca clandestinamente na viagem. No entanto, um temporal tira o grupo do caminho, fazendo com que busquem refúgio numa floresta, onde passam a noite ao lado de um charco — episódio decisivo para o restante da história. Cf. O charco do diabo. Trad. J. M. Machado. São Paulo: Círculo do Livro, 1952. (N. do T.)
[25] Vilarejo do departamento de Nako, em Burkina Faso. (N. do T.)
[26] Na França, menins eram os membros de um seleto grupo, formado por jovens, que conservava laços estreitos com o delfim (o príncipe herdeiro). Trata-se de um empréstimo feito da língua espanhola, na qual o termo também designava o pajem [menino] ou a dama de companhia [menina] que ficava a serviço do príncipe ou da princesa da coroa — como as personagens no quadro de Diego Velázquez [1599-1660], intitulado Las meninas [As damas de companhia]. (N. do T.)
[27] Charles Pfersdorff [1875-1953], médico que havia se formado na Kaiser-Wilhelms-Universität (Estrasburgo), passou a atuar como assistente na Clínica Médica do Hospital Civil da cidade em 1899. Foi para Viena em 1901 a fim de estudar seis meses com Richard von Krafft-Ebing [1840-1902]; e no ano seguinte, para Heidelberg, onde estudou com Emil Kraepelin [1856-1926] durante um ano. Já tendo atuado como professor na Universidade de Estrasburgo antes da Guerra — que o levou à frente de batalha, mantendo-o afastado da docência —, retorna à cidade em 1917 e, em 1919, assume a cátedra de psiquiatria, da qual será titular até o ano de 1945. Suas contribuições se deram em torno de três temas principais: a demência precoce, a esquizofrenia (especialmente do ponto de vista dos aspectos linguísticos) e as crianças com deficiência intelectual. Em Travaux de la Clinique… — revista que, fundada por ele, era editada e financiada pela Clínica Psiquiátrica da Universidade de Estrasburgo —, Pfersdorff publicou uma série de textos na qual se insere o artigo aqui citado: vol. 5, 1927, pp. 1-157; vol. 10, 1932, pp. 260-366; vol. 11, 1936, pp. 43-182. Cf. Julie Clauss, Un état des lieux diagnostique comme outil de repérage et d’analyse de l’introduction de la notion de schizophrénie à la Clinique Psychiatrique Universitaire des Hôpitaux de Strasbourg (1912-1962). Monografia [Residência em psiquiatria]. Faculdade de Medicina, Universidade de Estrasburgo, 2015. Disponível em: <dhvs.unistra.fr/fileadmin/uploads/websites/dhvs/Recherche/Clauss_2015.pdf>. (N. do T.)
[28] C. Pfersdorff, “Contribution à l’étude des catégories du langage: l’interprétation ‘philologique’” [Contribuição ao estudo das categorias da linguagem: a interpretação “filológica”],  Travaux de la Clinique psychiatrique de la Faculté de Medecine de Strasbourg, vol. 7, 1929, pp. 241-362.
[29] Henry Head [1861-1940], considerado um dos maiores neurologistas ingleses, realizou pesquisas pioneiras no campo dos sistemas sensoriais. Seu último grande trabalho, Aphasia and kindred disorders of speech [Afasia e outros distúrbios da fala aparentados], foi avaliado por Macdonald Critchley (The black hole and other essays [London: Pitman, 1964]) como “a melhor monografia sobre o tema da afasia na literatura neurológica”. Ao descrever a “afasia semântica” nessa obra, Head propõe um vínculo entre os aspectos linguísticos e intelectuais da fala, algo cujas implicações posteriormente receberiam crédito e ampliação de afasiologistas moderno. No campo da fisiologia experimental, investigou o funcionamento dos nervos sensoriais, utilizando a si mesmo como cobaia. (N. do T.)
[30] H. Head, Aphasia and kindred disorders of spech. Cambridge: University Press, 1926.
[31] A aproximação com esses doentes ditos “orgânicos” não tem nada de ousado que não já tivesse sido feito por vários autores. Cf. a comunicação de Claude, Bourgeois e Masquin junto à Soc. Méd. Psic, de 21 de maio de 1931. [Trata-se do trabalho apresentado por Henri Claude, Pierre Bourgeois e Pierre Masquin intitulado “Troubles du langage dans un cas de psychose paranoide” [Distúrbios da linguagem num caso de psicose paranoide], Les Annales Médico-Psychologiques, vol. 13, n. 1, jan-mai de 1931, pp. 490-500. Disponível em: <www.biusante.parisdescartes.fr/histoire/medica/resultats/index.php?cote=90152x1931x01&p=518&do=page>   (N. do T.)].
[32] Cf. H. Delacroix, Le langage et la pensée [A linguagem e o pensamento]. Paris: Alcan, 1924 [Disponível em: <gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k751795> (N. do T.)].
[33] A ruminação mental consiste no retorno obsedante dos mesmos pensamentos improdutivos ou das mesmas preocupações, dominados pela dúvida, sem que possam ser descartados da consciência. (N. do T.)
[34] No original, Respans: termo do antigo occitano auvernês para designar o Domingo de Ramos. (N. do T.)
[35] No original, tougne: termo occitano que possivelmente tem sua origem no nome de um pão redondo à base de milho (tougnol) e que se semanticamente associado à ideia de “mulher estúpida”. (N. do T.)
[36] André Breton. Manifeste du surréalisme [Manifesto do surrealismo]. Paris: Éditions du Sagittaire, 1924 [Dados e imagens da primeira edição estão disponíveis em: <www.andrebreton.fr/work/56600100955261> (N. do T.)].
[37] Cf. A. Breton e P. Eluard. L’Immaculée conception. Paris: Éditions Surréalistes, 1930 [Dados e imagens da primeira edição estão disponíveis em: <www.andrebreton.fr/work/56600100755041>. (N. do T.)]
[38] P. Eluard; B. Péret. 152 proverbes mis au goût du jour [152 provérbios adaptados ao gosto do dia]. Paris: La Révolution surréaliste, 1925;  R. Desnos, Corps e biens. Paris: Gallimard (“Nouvelle Revue Française”), 1930 .
[39] Na versificação clássica, verso composto de seis pés (sílabas métricas). Esse ritmo hexassilábico está presente, de fato, em praticamente todas as linhas dos textos de autoria da paciente aqui apresentados; por exemplo: “|1 ao | 2 seu | 3 ras | 4 par | 5 do | 6 co(ro)  //  1 eu | 2 fa | 3 ço^a | 4 u | 5 ma^é | 6 la(ssa)”. (N. do T.)
[40] A escansão do provérbio também aponta estruturas hexassilábicas: “|1 ao | 2  ven | 3 cer | 4 sem | 5 pe | 6 ri(go)  //  1 tri | 2 un | 3 fa | 4 se | 5 sem | 6 gló(ri^a)”. (N. do T.)
[41] Trata-se dos versos iniciais do poema “La Voulzie” [O Vulzia], escrito por Pierre-Jacques Roulliot [1810-1838] — conhecido como Hégésippe Moreau. Voulzie é o nome de um rio situado no departamento de Seine-et-Marne. Uma leitura do poema pode ser ouvida em: <gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k129692v.r=%22La%20Voulzie%22?rk=21459;2>. (N. do T.)