20.06.1929 | Paralisia geral com síndrome de automatismo mental

[ Paralysie générale avec syndrome d’automatisme mental ]

Comunicação realizada junto à Sociedade de Psiquiatria de Paris, na sessão do dia 20 de junho de 1929, por Georges Heuyer [1884-1977] e Jacques Lacan, sobre o caso de uma mulher de 40 anos manifestando “ideias de perseguição e transtornos de conduta”. A paciente foi recebida na Enfermaria Especial do Comando de Polícia, serviço de psiquiatria ligado ao Hospital Sainte-Anne de Paris, onde Lacan realizou sua residência médica sob a supervisão de Gaëtan Gatian de Clérambault. Sua entrada data do dia 18 de abril de 1929, aproximadamente dois meses antes da presente comunicação. A paciente manifesta uma síndrome de automatismo mental completa, ainda que com pouca interpretação e com ideias de grandeza que indicam um déficit intelectual. Exames suplementares apontam para o diagnóstico de paralisia geral, levando os médicos a afirmarem a existência de uma “uma síndrome de automatismo mental evoluindo no decorrer de uma paralisia geral”. Segundo os autores, casos como este não eram raros. Após esta primeira avaliação, a paciente será encaminhada ao serviço de Armand Marie e a evolução do caso confirmará o diagnóstico. A título de informação, lembramos que Georges Heuyer foi um dos primeiros médicos franceses a se interessar pela psicanálise.

L’Encéphale, 1929, vol. 24, n. 9; pp. 802-803.

L’Année psychologique, 1929, vol. 30; p. 483.

Jahresbericht über die gesamte neurologie und psychiatrie, 1929, vol. 13; p. 246.

Apresentamos uma doente de 40 anos cuja paralisia geral é certa e na qual o modo sintomático inicial oferece certo interesse. Durante dois anos uma síndrome alucinatória completa ocupara o primeiro plano, e é na qualidade de alvo de perseguição que ela foi enviada à Enfermaria Especial do Comando da Polícia, onde tivemos a oportunidade de examiná-la e atestá-la, mediante internação.

Observações – Srta. L., 40 anos, enviada à Enfermaria Especial no dia 18 de abril de 1929 por de ideias de perseguição e transtornos de conduta.

Desde as primeiras palavras a doente se apresenta como uma alucinada. Ela se queixa de estar sendo vigiada, fotografada de fora dos muros. Estão fazendo um filme da sua vida, “um filme sonoro”.[1] Vozes ameaçam ir com ela às vias de fato, matá-la. As alucinações genitais são muito intensas. A síndrome de automatismo mental é completa. Captam seu pensamento, repetem a sua voz; ela mantém diálogo constante com pessoas que a informam de fatos de toda sorte, de inquéritos feitos a seu respeito. Entre as vozes, há as ameaçadoras, como a da senhoria; outras, agradáveis. Ela tem distúrbios cenestésicos: fazem com que ela sinta correntes elétricas, enviam-na sensações combinadas que ela compara a fios de um comprimento desmesurado. Alucinações olfativas: fedores que cheiram a “blenorragia, heroína, éter, coca”. Alucinações gustativas: fazem com que ela sinta gostos ruins, “que parecem com vinagre”.

Ela interpreta pouco. Pensa ser vítima da polícia judiciária, talvez de soldados. Queixa-se, apenas: “Que vida!” — diz ela sorrindo. No conjunto, esse automatismo é praticamente anideico, quase sem ideias de perseguição.

Em contrapartida, há ideias de grandeza imaginativas que indicam um déficit intelectual: os policiais que dormem com ela lhe deram 500.000 francos etc. A aprobabilidade, a euforia, um pouco de desorientação, o caráter fabulatório e absurdo das ideias delirantes megalomaníacas fazem suspeitar de paralisia geral, a qual confirmam os sinais físicos: disartria nas palavras de teste; tremor da língua e dos dedos; vivacidade dos reflexos tendinosos. Não há distúrbios pupilares. Antecedentes: sífilis aos 18 anos; mapeamento; cuidados regulares e enérgicos em Saint-Lazare;[2] óleo cinzento.[3] O namorado da doente insiste no tratamento regular e prolongado pelo qual ela passou por causa de sua sífilis.

Há, então, uma síndrome de automatismo mental evoluindo no decorrer de uma paralisia geral. As alucinações existem há dois anos sem nenhuma modificação; a desordem dos atos que necessitou a intervenção é, antes mesmo, sintomática da paralisia geral: fuga, errância, onanismo em público.

Os exames de laboratório confirmaram o diagnóstico: albumina raquidiana, 0,45g. Pandy[4] positivo; linfócitos 4/mm3; Wassermann[5] positivo no sangue e no líquido cefalorraquidiano; reação do benjoim positiva.[6]

A doente, dando entrada junto ao doutor A. Marie,[7] foi acompanhada por nós durante dois meses. A síndrome alucinatória persistiu, num primeiro momento, sem modificação alguma. Depois, aos poucos o enfraquecimento intelectual se acentuou; a demência se tornou tamanha que há quinze dias não há nada mais que uma verbigeração, com encadeamento por assonância de frases incoerentes. A euforia, a apatia são ainda mais acentuadas e, atualmente, o interrogatório da doente sobre o seu tema delirante tornou-se difícil de tanto que ela é aprobativa e sugestionável.

Nós a apresentamos à Sociedade[8] porque é um novo exemplo de automatismo mental no início e no decorrer de uma paralisia geral. As observações desse gênero não são raras. O Sr. Janet já havia relatado um caso em 1906, no Journal de Psychologie.[9] Desde então, os Srs. Laignel-Lavastine e P. Kahn;[10] um de nós, com o Sr. Sizaret e o Sr. Le Guillant;[11] o Sr. Lévy-Valensi[12] apresentaram diversas observações. Esta nos pareceu interessante porque durante dois anos a síndrome de automatismo mental quase pura dominou o quadro clínico, tanto que a demência não foi muito marcada. A síndrome de automatismo mental bem constituída resistiu muito tempo à demência paralítica. Foi quando o desmoronamento intelectual foi total e completo que vimos ruir os elementos da síndrome e desaparecer sua coerência.

Ademais, pretendemos aplicar nessa doente um tratamento de malarioterapia.[13] O Sr. Prof. Claude[14] mostrou diversos casos de paralisia geral que, depois de um tratamento de malariaterapia, apresentavam uma forma paranoide. Aqui é uma situação inversa: o estado paranoide, sintomático da paralisia geral, precede a malarioterapia; e parece interessante ver o que se tornará a síndrome alucinatória depois da impaludação.


[1] Cumpre notar que o filme sonoro amplamente reputado como tendo sido o primeiro de grande duração havia sido exibido em Nova York, no dia 6 de outubro de 1927. Trata-se de “O cantor de jazz” [The Jazz Singer], de Alan Crosland. O filme tinha passagens faladas e cantadas, e utilizava um sistema sonoro eficaz, conhecido como Vitaphone — lançado um ano antes pela Warner Bros. (N. do T.)
[2] Fechado definitivamente no ano de 1998, os primeiros relatos da existência do Hospital Saint-Lazare remontam ao séc. XII, quando a instituição se dedicava ao cuidado de pacientes com lepra. Durante a Revolução Francesa, torna-se prisão, passando a funcionar, por volta de 1830, como serviço especializado para prisioneiras portadoras de doenças venéreas. Em 1927 a prisão é fechada e o estabelecimento se torna, nos anos de 1930, a Casa de Saúde Saint-Lazare — continuando a tratar mulheres até 1955. (N. do T.)
[3] Sobre os usos do óleo cinzento (oleum cinereum) — que consistia em injeções à base de mercúrio — nos casos de sífilis, cf. A. Moreno (1910) O oleo cinzento no tratamento da syphilis. Dissertação inaugural apresentada à Escola Medico-Cirurgica do Porto. Porto: Typographia a vapor de Arthur José de Souza & Irmão. Disponível em: <repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/17327/2/142_4_EMC_I_01_C.pdf>. (N. do T.)
[4] O Teste de Pandy é uma prova semiquantitativa onde o fenol reage principalmente com as globulinas. Em infecções crônicas, como sífilis terciária, e na esclerose múltipla a elevação de globulinas torna o teste de Pandy positivo. (N. do T.)
[5] Levando os nomes de Jules Bordet [1870-1961] — Nobel de fisiologia e medicina em 1919, por sua descoberta do bacilo da coqueluche — e August Paul von Wassermann [1866-1925] — um bacteriologista alemão —, a reação Bordet-Wasserman trata-se de uma reação de hemólise (dissolução dos glóbulos vermelhos) que foi desenvolvida por Wassermann em 1906, não sem reconhecer a importância de achados anteriores realizados por outros cientistas, dentre eles Jules Bordet. Consistia essencialmente em pôr frente a frente o antígeno, um complemento e o soro suspeito de conter o anticorpo sifilítico, permitindo detectar precocemente um anticorpo não específico contra a sífilis (a anticardiolipina), garantindo a intervenção medicamentosa precoce. Cf. E. Gonçalvez (1926) Sobre a sero-reacção de Bordet-Wasserman. Porto: Enciclopédia portuguesa. Disponível em:  <repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/17673/2/221_2_FMP_TD_I_01_C.pdf>. (N. do T.)
[6] A Reação do Benjoim Coloidal é uma reação de floculação de uma suspensão coloidal de benjoim pelo líquido cefalorraquidiano (L.C.R.) utilizada como meio de diagnóstico tanto da sífilis quanto das meningites. Ela é realizada em 15 (ou 16) tubos nos quais se faz a diluição sucessiva do L.C.R., e a cada tubo adiciona-se a mesma quantidade de coloide de benjoim, observando-se, depois, a ocorrência ou não de floculação nos tubos. O tubo que não apresentar floculação receberá o valor 0; o tubo com floculação total, o valor 2;  o que for parcial, o valor 1. Dito isso, o resultado será dado por uma sequência de 15 algarismos (ou uma vírgula e mais um), contados da direita para a esquerda. (N. do T.)
[7] Armand Victor Auguste Auguste Marie [1865-1934] foi um psiquiatra, higienista e filantropo francês. Médico-chefe dos asilos de alienados do antigo departamento do Sena, Marie fundou a primeira Colônia Familiar na França, criou o primeiro museu de arte patológica e deu início ao primeiro centro de malarioterapia no país. (N. do T.)
[8] Trata-se da Sociedade de Psiquiatria de Paris. O periódico L’Encéphale, que era seu veículo, foi publicado entre 1906 e 1973. Foi relançado, em nova série, no ano de 1975. Cf. <catalyst.library.jhu.edu/catalog/bib_27744>. (N. do T.)
[9] Trata-se de comunicação realizada pelo autor junto à Sociedade de Psicologia no dia 1º de junho. Cf. P. Janet (1906) “Un cas de délire systématisé dans la paralysie générale” [Um caso de delírio sistematizado na paralisia geral]. Journal de psychologie normale et pathologique, vol. 3; pp. 331-334. Disponível em: <gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9656691d/f339.image>. Pierre Marie Félix Janet [1859-1947] era professor do Collège de France e fundou, em 1903, com George Dumas [1866-1946] — professor que o havia sucedido um ano antes na cadeira de Psicologia Experimental da Faculdade de Letras, Sorbonne —, o referido periódico. (N. do T.)
[10] Cf. M. Laignel-Lavastine & P. Kahn (19/02/1925) “Syphilis du névraxe avec délire systematisé” [Sífilis do eixo neural com delírio sistematizado]. Revue neurologique, vol. 1, 1925; pp. 498-499. Disponível em: <www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/medica/page?130135x1925x01&p=552>. Paul Marie Maxime Laignel-Lavastine [1875-1953] foi um psiquiatra francês, membro da Academia Nacional de Medicina e da Academia Internacional de História da Ciência. Professor de Maurice Bouvet (cf. a carta de J. Lacan a R. Loewenstein, em 1953), Laignel-Lavastine prefaciou Le sens de la vie, de A. Adler (1933). Pierre Kahn [1881-1932] foi médico interno titular em Paris, assistente do Prof. Laignel-Lavastine. Com uma tese respeitada sobre a ciclotimia, vinha se interessando pela psicose encefalítica. (N. do T.)
[11] Louis Le Guillant [1900-1968] seria considerado, na França, um dos principais líderes de um grupo de precursores da Psicoterapia Institucional e da Reforma Psiquiátrica francesa. É responsável, com Paul Sivadon [1907-1992], pela fundação da Psicopatologia do Trabalho. Cf. P. C. Zambroni-de-Souza et al. (2009) ‘O pioneirismo de Louis Le Guillant na reforma psiquiátrica e psicoterapia institucional na França: a importância do trabalho dos pacientes para a abertura dos hospícios”. Estudos e Pesquisas em Psicologia, vol. 9, n. 3. Disponível em: <pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812009000300005>. (N. do T.)
[12] Cf. J. Lévy-Valensi (1927) L’automatisme mental dans les délires systématisés chroniques d’influence et hallucinatoires: le syndrome de dépossession [O automatismo mental nos delírios sistematizados crônicos de influência e alucinatórios: a síndrome de despossessão]. Paris: Masson. (N. do T.)
[13] Em 1917, o médico austríaco Julius Wagner von Jauregg [1857-1940], tendo colhido sangue de um soldado que havia contraído malária (também chamada de “paludismo”), inoculou-o em nove pacientes com sífilis. Seis deles apresentaram melhora. Entre 1917 e os anos 1940 (descoberta da penicilina), milhares de pacientes com sífilis foram infectados com o parasita da malária, com finalidade terapêutica. Até hoje se desconhece o mecanismo pelo qual a malária se associava à melhora dos quadros neuropsiquiátricos da sífilis; porém, cerca da metade dos pacientes tratados melhorava o suficiente para retornar à vida cotidiana. Dez anos depois de sua descoberta, von Jauregg receberia o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina. Cf. D. Varella, “Malarioterapia”. Disponível em: <drauziovarella.com.br/drauzio/malarioterapia>. (N. do T.)
[14] Henri Claude [1869-1945], com seu entendimento dinâmico e psicobiológico, ocupou a cadeira de clínica de enfermidades mentais entre os anos de 1922 e 1939 no Hospital Sainte-Anne. Aberto à psicanálise, teve entre seus assistentes René Laforgue [1894-1962], Adrien Borel [1886-1966], Michel Cénac [1891-1965], Rudolph Loewenstein [1898-1976], Sacha Nacht [1900-1977], Jacques Lacan [1901-1981] e Raymond de Saussure [1894-1971]. Entre 1927 e 1931, foi o primeiro professor de psiquiatria de Lacan no referido hospital. A Revue Française de Psychanalyse foi lançada, em 1927, sob os seus auspícios, marcando a estreiteza do laço que os primeiros psicanalistas almejavam conservar com a psiquiatria. Cf. J. Sédat (2004)” Lacan et la psychiatrie. Lacan et les psychiatres”. Topique, 2004/3, n. 88; pp. 37-46. Disponível em: <www.cairn.info/revue-topique-2004-3-page-37.htm>. (N. do T.)

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Sobre o Autor

Escrito por

Linguista e tradutor, exerce a psicanálise na cidade de São Paulo. Bacharel e doutor em linguística pelo IEL-Unicamp, realizou pós-doutoramento no Depto. de Ciência da Literatura da UFRJ. Atuou como professor-associado junto ao Depto. de Língua Romena e Linguística Geral da Universidade Alexandru Ioan Cuza (Iaşi, 2009) e foi tradutor residente do Instituto Cultural Romeno (Bucareste, 2013). Organiza a coletânea “A psicanálise e os lestes” (Ed. Annablume) e é um dos editores da Revista Lacuna (www.revistalacuna.com).