[ Lettre à Ferdinand Alquié du 16 octobre 1929 ]
Inédito.
Paris
Quarta-feira
16.X.1929
O senhor foi embora, Alquié;[1] o senhor quer voltar. Sob que pressão, sob que incitação tomou essa decisão, que não é ruim, mas pela qual lamenta? Como é que foi me faltar sexta-feira, há quinze dias? Que teríamos dito um ao outro naquele momento? Aí estão perguntas nas quais não me delongarei, para lhe fazer somente a seguinte: o que se pode fazer pelo senhor? Que resultado está, administrativamente, dentro nos limites do possível; quero dizer, do demandável?
Diga-me: agirei o quanto puder. Acionarei, sobretudo.
Está sentindo, Alquié? Alguma coisa jaz no fundo de nós; algo que, conosco, mas quase a nosso despeito, cresce e amadurece; que vive de nós, mas nos faz triunfar muitas vezes em relação à morte.
Quase a nosso despeito, disse eu, isto deve chegar à maturidade. É que tampouco estamos livres para acelerar a sua vinda, para orientar a sua forma — ao menos não sem danos.
Nossos esforços, nosso trabalho cotidiano decerto alimentam esse “gênio” — ao menos é nisso que se quer acreditar. Mas é menos pelo conteúdo e o objeto desses esforços do que na medida em que eles tonificam, exaltam e exercitam toda a nossa pessoa. Sente-se justamente que tudo isso só faz despertar alguma coisa de inato em[2] nós que também ressoaria, quiçá, a qualquer desencadeamento — ou até mesmo à inércia.
Contudo, isto que está em nós e que nos possui; isto não pode sobressair e triunfar enquanto a ele estiver ligado aquilo que o torna impuro: nada menos que nós mesmos — o nós-mesmos odiável, nossa particularidade, nossos incidentes individuais, nosso proveito.
Um único modo de ascetismo me parece dever fazer frente a isso: esmigalhar os nossos desejos contra os seus objetos, fazer a nossa ambição fracassar através da própria desordem que em nós ela engendra. Quero dizer que nada é mais profundamente querido pelo nosso demo[3] do que alguns dos nossos fracassos. Vamos julgar o primeiro pelo que nos custam os segundos.
Um grupo de indivíduos que tivessem levado esse amansamento ao mais alto grau poderia entender que a mesma voz fala em todos eles. Um ascetismo — este, arbitrário — deveria levá-los a deixá-la falar somente pela gorja[4] de alguns.
Nada de solidão para o aventureiro do espírito, só resistências.
Elas estão em seu auge no momento que se poderia crer tê-las abatido. Finalmente eles conseguem essa “liberdade” pela qual há séculos estão lutando. Mas não nos mostram mais que rostos vazios de amantes separados de si mesmos — ou estupefatos com o rosto descoberto da amada.
Quantos haveria de nós que saberiam estar quites. O senhor já não deve ser — antes de qualquer coisa — nada além de máscaras. Enumere-se.
Para voltar a considerações menos elípticas, nem sinal da revista Documents.[5] Publicados os números 3 e 4, no entanto, adoraria tê-los, se puderem fazer o obséquio, como me havia prometido.
Estou com um Bénichou aqui[6] — prestes a sair pro serviço. Ele é sólido.
Falamos do senhor. Tudo foi me ocorrendo em sequência. A sua carta de férias à qual não respondi, o seu conteúdo — e também o meu pesar de não tê-lo visto antes de sua partida.
Escreva-me o endereço de Michel Leiris.[7] Escreva-lhe sobre mim. Daí me encontro com ele. Deviam dar um número na Chantiers[8], isso sim.
Ao seu dispor,
Jacques Lacan
[1] Ferdinand Alquié [1906-1985], apaixonado por uma mulher, havia entrado numa história de amor que ele próprio chamava de “obsessão”. Dizia ter encontrado “uma mulher em si mesma, sem além”, cuja “realidade de carne” limitava seu horizonte, impedindo-o de “acreditar em Deus”. Em suas palavras: “Percebi o objeto como tal, despojado de todas as suas relações exteriores, e de algum modo tomado em si mesmo, em sua realidade”. Sobre a intervenção de J. Lacan, mediante a presente carta, em relação à história do amigo, cf. a comunicação de J. Allouch (2013) “Nouvelles remarques sur le passage à l’acte”, p. 4. Disponível em: <www.jeanallouch.com/document/258/2013-nouvelles-remarques-sur-le-passage-a-l-acte.html>. Cf. também F. Alquié (2003) Cahiers de jeunesse. Paris: L’Âge d’homme, pp. 141-ss. (N. de. T.)
[2] Na transcrição francesa, “et” [e]. Aqui, corrigido conforme o manuscrito. (N. do T.)
[3] Cf. a carta de J. Lacan a F. Alquié de 06.08.1929. (N. do T.)
[4] No original, organe [“órgão”, mas também “a voz de uma pessoa”]. (N. do T.)
[5] Idealizada por Georges Henri Rivière [1897-1985], Georges Bataille [1897-1962] e Carl Einstein [1885-1940], Ducuments foi uma revista francesa publicada entre abril de 1929 e janeiro de 1931, totalizando 15 números. Veiculava uma oposição ao idealismo e ao estetismo da época, marcando uma ruptura com o surrealismo. Alguns de números (os que haviam sido publicados até então, quando Lacan escreve a carta a Alquié, encontram-se disponíveis em: <gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb34421975n/date>. (N. do T.)
[6] Trata-se, ao que tudo indica, daquilo que estava em curso de escrita e se tornaria o famigerado Morales du grand siècle [Morais do grande século], publicado pelo crítico e historiador argelino Paul Bénichou [1909-2001] no ano de 1948. Bénichou havia se tornado amigo de Alquié no liceu Louis-le-Grand, onde foi se preparar para ingressar na Escola Normal Superior. Seguindo os mesmos rumos do amigo, torna-se professor de letras e, após seu doutoramento, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica – CNRS, lá ficando entre os anos 1959-1979. Em seguida, assume o cargo de professor titular da Universidade de Harvard. Cf. Paul Bénichou, critique littéraire et historien des idées. (Tlemcen [Algérie], 19 septembre 1909 – Paris, 14 mai 2001). Archives Juives, 2006/2, vol. 39, pp. 122-124. Disponível em: <www.cairn.info/revue-archives-juives-2006-2-page-122.htm>. Bénichou é regularmente evocado nos cadernos de juventude escritos por Alquié. Cf. F. Alquié (2003) Cahiers de jeunesse. Lausanne: L’Âge d’Homme. Disponível em: <ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/ALQUIE-Ferdinand-Cahiers-de-jeunesse.pdf> (N. do T.)
[7] Michel Leiris [1901-1990] foi um, etnólogo, etnógrafo, poeta, memorialista e crítico de arte parisiense que trabalhou na referida revista Documents. Cf. mais sobre o autor em L. F. Sobral (2016) “Michel Leiris”. In: Enciclopédia de Antropologia. FFLCH-USP. Disponível em: <ea.fflch.usp.br/lista-de-verbetes?q=node/79>. (N. do T.)
[8] Ativa entre os anos de 1928 e 1930, a revista Chantiers — criada em Carcassonne (França) por François-Paul Alibert [1873-1953], Joë Bousquet [1897-1950], Claude-Louis Estève [1890-1933] e René Nelli [1906-1982] — reunia poetas, escritores e filósofos. Grandes nomes da literatura contribuíram com a revista (dentre eles: Michel Leiris [1901-1990] e Paul Éluard [1895-1952]), assim como artistas plásticos (Max Ernst [1891-1976], Georges Malkine [1898-1970], entre outros). (N. do T.)