19.12.1929 | Paralisia geral prolongada

[ Paralysie générale prolongée ]

Comunicação realizada por René Targowla [1894-1973] e Jacques Lacan [1901-1980], em 19 de dezembro de 1929, junto à Sociedade de Psiquiatria de Paris.

L’Encéphale, 1930, t. 1; pp. 83-85.

O doente que vamos apresentar é um paralítico geral cuja doença já dura pelo menos sete meses. A relativa raridade dos casos desse gênero e de certos detalhes da observação nos pareceram justificar a apresentação.

A… P…, 52 anos.

EVOLUÇÃO CLÍNICA – Casado desde 1906; sem filhos e sem abortos espontâneos por parte da mulher. Sem doença importante. Nenhum precedente de contaminação. Em 1918, comoção de guerra, donde nascem certos sintomas que fazem com que ele reforme com 15%;[1] parece, aliás, que a questão da sífilis foi colocada nesse momento. Ele retoma suas ocupações, mas no momento constatam-se nervosismo, insônia, pesadelos de guerra, irritabilidade, tendências impulsivas. Em setembro de 1922 ocorre o episódio que compele à atenção. Em viagem para o enterro de uma parente, perde a conexão dos seus trens, fica sem rumo, adormece numa estação, retorna sem sequer se dar ao trabalho de dar a menor explicação do que fez esse tempo. A partir desse momento, “taciturno, inerte, comportando-se feito uma criança”, tem grandes distúrbios da memória, distúrbios da fala, faz compras descabidas para o comércio de moda do qual ele se ocupa, vende bibelôs que pertencem à família e gasta esse dinheiro de uma forma incontrolável. O diagnóstico é de paralisia geral, mas receberá cuidados de forma regular em 1924, no Instituto Profilático,[2] onde se constata um emagrecimento notável, grandes déficits de memória, uma irregularidade pupilar com sinal de Argyll-Robertson bilateral,[3] reflexos patelares fracos, aquileus abolidos, tremor das mãos e da língua. Sem sinal de Romberg.[4] Recebe cuidados, de janeiro de 1924 a novembro de 1924, através de uma série de 20 injeções de Quinby,[5] depois duas séries de triparsamida-salicilato de mercúrio,[6] e, de novembro de 1924 a outubro de 1925, através de quatro séries de 8 injeções de triparsamida-salicilato de mercúrio.

É dado como melhor, sem que tenhamos podido obter observações mais precisas. O retorno de uma atividade ao menos parcial é tal que ele se considera curado, não retorna mais ao Instituto Profilático e, em 1927, no lugar do pequeno comércio, abandonado nesse meio-tempo, se encarrega de uma gerência de hotel. Mas suas cóleras frequentes contra os clientes, sua irritabilidade, logo forçam-no a abandonar essa nova empreitada. Vende os objetos que se encontram em casa, pratica atos de violência contra sua mulher. São essas manifestações, bem como um pequeno icto provocando uma hemiparesia direita — passageira, aliás —, que levam sua mulher a fazer com que ele desse entrada, em junho de 1929, junto ao hospital Henri-Rousselle.[7] No hospital, revelou-se da forma que está desde então. Demente, incapaz de trabalhar, indiferente, apático e eufórico; apresenta uma disartria que o torna incompreensível. Bastante presente no interrogatório, em geral bastante bem orientado, tem um grande déficit mnésico no que concerne à sua vida passada, com um acometimento até mesmo de noções adquiridas automáticas, como a tabuada; não consegue captar um raciocínio elementar no que concerne a seus erros, mostra-se incapaz de um esforço psíquico, tem distúrbios da escrita. Afetividade extremamente diminuída. Bruxismo, tremor lingual, reflexo fotomotor abolido, pupila esquerda maior que a direita; o reflexo aquileu provoca apenas uma fraca flexão dos artelhos em direção à sola, o patelar esquerdo encontra-se abolido; o patelar direito é fraco; há ptose[8] do olho direito e uma leve diminuição da força muscular do membro superior direito, sequela da hemiparesia direita. Bom estado geral; peso: 67kg. Pressão arterial: 11 1/2 – 8. Nada nos demais aparelhos.

Tratamento: uma série de stovarsol[9] em pequenas doses, das quais as primeiras injeções reativam os sinais sorológicos do líquido cefalorraquidiano; depois, em novembro, malarioterapia[10] sem nenhum resultado perceptível até agora.

EVOLUÇÃO DA SÍNDROME SOROLÓGICA

LEGENDAS (N. do T.)

R. de Vernes ou de B.-W. | Reação de Vernes (sorofloculação da resorcina) ou de Bordet-Wassermann (reação desenvolvida em 1906, permitindo identificar os anticorpos contra a sífilis)
L.C.R. | líquido cefalorraquidiano
Alb. | albumina
Leuco | leucócitos
Reação do benjoim | floculação de uma suspensão coloidal de benjoim em uma série de tubos contendo líquido cefalorraquidiano (na sequência dos resultados, cada cifra corresponde a um tubo, sendo 0 = não floculação; 1 = floculação parcial; 2 = floculação total)
G.O. | grau de opacidade (num teste de diluição proposto por Vernes, quanto mais turvo, maior a presença de anticorpos contra a sífilis)
cc | centímetro cúbico
mmc | milímetro cúbico
por campo | por campo microscópico (área da preparação que se está observando ao microscópio óptico)

Bem parece que se está na presença de uma síndrome paralítica, digna de nota por sua duração anormal. Um primeiro ponto merece atenção: as modificações dos reflexos tendinosos. Estes estão extremamente atenuados, mas não se encontram abolidos; por outro lado, não há, na evolução da doença, outra manifestação tabética. Cumpre, então, bastante reserva no que concerne à possibilidade de tabes[11] associada, diagnóstico a que frequentemente se chega sem discussão suficiente; parece mais se tratar de um processo de inflamação difusa paralítica que evoluiu para a esclerose, como se vê nas formas prolongadas de paralisia geral, e que acometeu não somente o encéfalo, mas diferentes partes do sistema nervoso.

Um segundo ponto interessante dessa observação é a evolução clínica. Caracterizou-se por uma remissão importante seguida de uma recidiva insensível, aparentemente lenta e progressiva, de sintomas neuropsíquicos. Caso comparada com as reações do líquido cefalorraquidiano, ve-sê que essas últimas atenuaram-se bastante rapidamente sob a influência do tratamento, ao mesmo tempo que os transtornos psíquicos. Cumpre observar, ademais, que atualmente elas são aparentemente negativas; há um contraste singular com a acentuação do estado demencial e da disartria, que mostram que o processo inflamatório continuou a evoluir silenciosamente. Essa persistência é, aliás, afirmada pela ação da reativação sobre a síndrome humoral; o negativo não implica, portanto, a cura absoluta, mas simplesmente a redução do processo encefalítico cuja intensidade é, de algum modo, abaixo do limiar das reações.

Por fim, notar-se-á a ausência de afecção intercorrente grave no doente. Logo, é verossimilmente à ação da triparsamida que é preciso imputar a remissão e a modificação do ritmo evolutivo. Parece que a ação da malarioterapia, nos casos favoráveis, é mais completa; temos poucas expectativas, nas condições em que ela foi instituída aqui, mas pensamos que, praticada desde início, em período de plena atividade inflamatória, e completada por um tratamento perseverante à base de arsenicais pentavalentes do tipo da triparsamida, ela é suscetível de conduzir à verdadeira cura, que não pôde ser obtida nesse caso, em que se observa apenas o retardamento da evolução.


[1] “Reforma” no sentido de “aposentação militar”, quando o indivíduo é reconhecido pela instituição como estando em condições impróprias para o serviço. O paciente, portanto, era reformado do Exército, recebendo por isso uma indenização/remuneração — à qual possivelmente diz respeito a referida porcentagem. (N. do T.)
[2] Antigo nome do atual Instituto Arthur Vernes, cuja criação, em 1916, destinava-se a atender questões de saúde pública, tendo como primeira missão o combate às doenças venéreas — especialmente a sífilis, principal objeto de estudo do médico parisiense Arthur Théodore Vernes [1879-1976]. (N. do T.)
[3] Levando o nome do oftalmologista escocês Douglas Moray Cooper Lamb Argyll Robertson [1837-1909], o sinal de Argyll-Robertson é composto dos seguintes elementos clínicos: integridade das vias óticas; miose (pupilas medindo menos de 2mm de diâmetro); dissociação das reações pupilares (reflexo fotomotor abolido e contração pupilar à mais leve convergência); bilateralidade do fenômeno. (N. do T.)
[4] Em 1836, Marshall Hall [1790-1857], fisiologista inglês, relatou o caso de um paciente com comprometimento da propriocepção e perda do controle postural em ambiente escuro. Alguns anos depois, constatou-se que pessoas com tabes dorsalis (uma degeneração das raízes posteriores da medula espinal e dos funículos posteriores que levam a sensibilidade profunda ao cérebro) apresentavam marcha incomum, com dificuldade de andar sem olhar para o chão ou no escuro. Em 1851, Moritz Heinrich Romberg [1795-1873], um neurologista alemão, descreveria a perda do controle postural em tabéticos com olhos fechados ou no escuro, reconhecendo no fenômeno uma função clínica e criando, assim, um teste simples e viável para avaliar a propriocepção do paciente, dito Sinal de Romberg — a pessoa ficar de pé, com os pés juntos e os olhos fechados, durante um minuto. Os sinais de Romberg e de Babinski (reflexo plantar, que seria descrito anos depois) passaram a ser considerados os mais importantes da neurologia. (N. do T.)
[5] Medicação à base de bismuto em suspensão oleosa. Tratava-se de 12 a 20 injeções intramusculares, numa razão de 0,075g de bismuto por ampola, e de uma ampola duas vezes por semana — o tratamento durando, então, entre 6 e 10 semanas. Utilizada no tratamento da sífilis, foi, por exemplo, uma das medicações recebidas por Antonin Artaud [1896-1948]. Sobre o uso do bismuto, cf. A. Berthet (1922) Syphilis et bismuth. Paris: Paul Dupont. Disponível em: <gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5701723d>. Sobre Artaud e as medicações, cf. Th. Lefebvre (2002) La genèse pharmacologique d’une œuvre: Antonin Artaud. Revue d’histoire de la pharmacie, vol. 90, n. 334, p. 271-184. (N. do T.)
[6] Triparsamida é um ácido arsênico derivado de Atoxyl (uma combinação orgânica de arsênico e anilina, considerada quarenta vezes menos tóxica que o arsênico puro). Ela se difundia pelo tecido nervoso e era capaz de fazer frente à tripanossomíase cerebral. Apesar de prejudicar o nervo ótico, continuou sendo muito utilizada até o começo da década de 1960 — e, nas formas resistentes de tripanossomíase, até muito recentemente. Um sal (salicilato) de mercúrio também era bastante utilizado no tratamento da doença, e isso internacionalmente, até a década de 1940. No Brasil, por exemplo, sabe-se que ainda nessa época « os doentes portadores de lesões contagiantes são tratados por séries de arsênico (Rhodarsan) e após este “tratamento de ataque” são submetidos ao “tratamento de fundo” por injeções de bismuto, iodeto de sódio, cianeto de mercúrio, biodeto de mercúrio e salicilato de mercúrio » (cf. Liga de Combate à Sífilis. Revista de medicina, vol. 26, n. 107, p. 4. Disponível em: <www.revistas.usp.br/revistadc/article/download/48447/52310>). (N. do T.)
[7] O Hospital Henri-Rousselle — nascido do Centro de Psiquiatria e Profilaxia Mental, idealizado por Édouard Toulouse [1865-1947] e Georges Heuyer [1884-1977] — faz parte, hoje, do complexo hospitalar Sainte-Anne, após ter perdido sua autonomia em 1941.
[8] Queda ou localização anormalmente baixa de um órgão. (N. do T.)
[9] Medicação desenvolvida em 1921 no Laboratório de Química Terapêutica do Instituto Pasteur, era composto de acetarsol (um arsenical orgânico pentavalente) e circulava sob o nome comercial de Treparsol — muito utilizada, inclusive no Brasil, sobretudo no tratamento da sífilis congênita/infantil. Sobre o uso medicinal do arsênico, cf. B. Gontijo; F. Bittencourt (2005) Arsênio: uma revisão histórica. Anais Brasileiros de Dermatologia, vol. 80, n. 1, pp. 91-95. Rio de Janeiro, fev. 2005. (N. do T.)
[10] Em 1917, o médico austríaco Julius Wagner von Jauregg [1857-1940], tendo colhido sangue de um soldado que havia contraído malária (também chamada de “paludismo”), inoculou-o em nove pacientes com sífilis. Seis deles apresentaram melhora. Entre 1917 e os anos 1940 (descoberta da penicilina), milhares de pacientes com sífilis foram infectados com o parasita da malária, com finalidade terapêutica. Até hoje se desconhece o mecanismo pelo qual a malária se associava à melhora dos quadros neuropsiquiátricos da sífilis; porém, cerca da metade dos pacientes tratados melhorava o suficiente para retornar à vida cotidiana. Dez anos depois de sua descoberta, von Jauregg receberia o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina. Cf. D. Varella, “Malarioterapia”. Disponível em: <drauziovarella.com.br/drauzio/malarioterapia>. (N. do T.)
[11] Na primeira metade do século XIX, a Europa estava tomada pela tabes dorsalis, que se saberia mais tarde (final do XIX) estar relacionada a estágios avançados da sífilis. Cf. nota 4. (N. do T.)

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Sobre o Autor

Escrito por

Linguista e tradutor, exerce a psicanálise na cidade de São Paulo. Bacharel e doutor em linguística pelo IEL-Unicamp, realizou pós-doutoramento no Depto. de Ciência da Literatura da UFRJ. Atuou como professor-associado junto ao Depto. de Língua Romena e Linguística Geral da Universidade Alexandru Ioan Cuza (Iaşi, 2009) e foi tradutor residente do Instituto Cultural Romeno (Bucareste, 2013). Organiza a coletânea “A psicanálise e os lestes” (Ed. Annablume) e é um dos editores da Revista Lacuna (www.revistalacuna.com).