20.11.1930 | Crises tônicas, combinadas com protrusão da língua e trismo produzindo-se durante o sono, em uma parkinsoniana pós-encefalítica. Consecutiva amputação da língua

[ Crises toniques combinées de protrusion de la langue et de trismus se produisant pendant le sommeil chez une parkinsonienne post-encéphalitique. Amputation de la langue consécutive ]

Observação realizada por Jacques Lacan, em 20 de novembro de 1930, junto à Sociedade de Psiquiatria de Paris.

 

L’Encéphale, 1931, vol. 2, pp. 145-146.

 

O

BSERVAÇÃO – Sra. L. 53 anos. Apresentação da doente: parkinsoniana evidente. Rigidez facial. Sulco nasogeniano muito acentuado à direita; sequela de paralisia facial à direita. Distúrbio da motilidade ocular. Vê-se, com a abertura da boca, um coto lingual correspondendo a uma perda de massa da língua; ele termina em três lóbulos, em um dos quais se acredita reconhecer a ponta da língua, de fato. Edentação terapêutica completa.

História da doença

Gripe “espanhola”,[1] depressão pós-gripal. Por volta dos 45 anos, hipertensão arterial. Desconfortos, insônia, irritabilidade.

Dezembro de 1927. Ao cabo de alguns dias, febre misteriosa, qualificada como intestinal; dura um mês e nunca ultrapassa os 39. Dorme todo o dia. Desperta para o almoço, dorme novamente. Contrasta com a insônia precedente.

Certo dia, paralisia facial fraca bem passageira, na sequência da qual se estabelece o espasmo.

Ano de 1928. Sonolência, que durará até setembro. Desde o início, estabelecem-se distúrbios da marcha. Crises tônicas oculares, ao que parece. Distúrbios do caráter. Bulimia. Emagrecimento de 25kg.

Durante o verão, surgimento de crises que nos interessam. Correndo para acudi-la, por conta de seus gritos certa noite, os familiares encontram a nossa doente com os dentes profundamente cravados na língua estirada para fora sem que ela possa abrir a mordida, soltando gemidos e gritos abafados; a crise cessa ao cabo de um quarto de hora, deixando marcas e feridas na língua. Consciência completa durante a crise. Cena renovada quase todas as noites. Sua filha a observa: ela constata, sempre durante o sono da doente, um movimento de abaixamento do maxilar; depois, um momento de protrusão da língua, que é seguido de um fechamento do maxilar e de um trismo.[2] A língua é, assim, pega pelos dentes; e imediatamente, acordada pela dor, a doente grita e gesticula. Não há estado crepuscular.[3] Caso se acorde a doente antes da mordida da língua, ela consegue recuá-la. “Olha só! Já ia me morder de novo”. Cessação das crises nos dois últimos meses do ano.

Ano de 1929. Inversão dos distúrbios do caráter no sentido de uma sensibilidade afetada e de um excesso de ternura. Tratamento com novarsenobenzol.[4] Ressurgimento declarado de violência contra seus familiares, de uma maldade perversa, de uma mitomania maligna expressa por discursos e berros pela janela.

Ressurgimento das crises de mordida da língua que desembocam, em abril, em uma gangrena parcial da mesma, seguida, nas próximas 24 horas, da queda da escara. As crises continuam. Após ter tentado, em vão, suprimir seus efeitos por uma espécie de calha dental de borracha, extraem-se todos os dentes da doente em maio de 29. As crises ainda são observadas pelo círculo próximo até agosto. Pudemos constatar, nós mesmos no serviço, movimentos de abaixamento do maxilar durante o sono.

Exame atual da doente. Parkinsoniana típica, transtornos da marcha, pulsão,[5] hipertonia, perda dos movimentos associados dos braços, feições fixas, comissura[6] labial direita aumentada, ptose[7] à direita, estrabismo interno bem marcado, ausência de mobilidade ocular. A edentação acentua ainda mais a profunda transformação da fisionomia da doente. Hipersalivação; incessante fio de saliva nas comissuras, contido com o auxílio de um lenço. Fala monótona, elevada, simultaneamente queixosa e agressiva. Escrita típica. Precisão e clareza nos dizeres. Viscosidade psíquica.[8] Malevolência. Pressão arterial: 18/12.

Exame dos olhos. Acuidade visual 0,4;[9] reação pupilar normal; pressão retiniana 60;[10] estrabismo interno existente antes de a doença se agravar; abolição dos movimentos de lateralidade dos olhos; conservação do movimento de convergência e dos movimentos de elevação e de abaixamento dos olhos. Não há amiotrofia[11] dos músculos extraoculares, nem clinicamente nem mediante exame elétrico.

Exames auditivo, de sangue, do líquido cefalorraquidiano: normais.

Comentário – Os espasmos tônicos pós-encefalíticos de protrusão da língua são raros na literatura. Salientamos uma nota de Christin sobre um caso de contratura pós-encefalítica da língua, na Revue Neurologique de 1922;[12] um caso de “protração da língua por espasmo na encefalite prolongada; amiotrofia localizada nos mastigadores”, pelos Srs. Lhermitte[13] e Kyriaco[14] (Revue Neurologique, 1928);[15] uma observação[16] dos Srs. Crouzon[17] e Ducas;[18] uma observação do Sr. Dubois[19] (de Berna); uma síndrome dos abaixadores do maxilar ao longo de uma síndrome consecutiva a uma gripe, publicada pelos Srs. Fribourg-Blanc[20] e Kyriaco na Revue Neurologique, 1929.[21]

Nossa observação difere das precedentes pela associação do trismo mutilador, pela ausência da amiotrofia frequentemente notada nessas observações. O ponto mais digno de nota nos parece ser o surgimento dessas crises durante o sono. Todas as observações anteriores insistem justamente na cessação ou na ausência de crises tônicas paroxísticas ou permanentes durante o sono.

 


[1] “A gripe espanhola – como ficou conhecida devido ao grande número de mortos na Espanha – apareceu em duas ondas diferentes durante 1918. Na primeira, em fevereiro, embora bastante contagiosa, era uma doença branda não causando mais que três dias de febre e mal-estar. Já na segunda, em agosto, tornou-se mortal. Enquanto a primeira onda de gripe atingiu especialmente os Estados Unidos e a Europa, a segunda devastou o mundo inteiro: também caíram doentes as populações da Índia, Sudeste Asiático, Japão, China e Américas Central e do Sul. No Brasil, a epidemia chegou em setembro de 1918: o navio inglês “Demerara”, vindo de Lisboa, desembarca doentes em Recife, Salvador e Rio de Janeiro (então capital federal). No mesmo mês, marinheiros que prestaram serviço militar em Dakar, na costa atlântica da África, desembarcaram doentes no porto de Recife. Em pouco mais de duas semanas, surgiram casos de gripe em outras cidades do Nordeste e em São Paulo” (J. Rocha, “Pandemia de gripe de 1918”, Invivo. Rio de Janeiro: Fiocruz. Disponível em: <www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=815&sid=7>).
[2] Constrição mandibular em razão da contratura involuntária dos músculos mastigatórios. (N. do T.)
[3] Estado de consciência perturbado, no qual um comportamento complexo e irracional pode ocorrer sem nenhuma recordação posterior, podendo se dar em associação com o despertar do sono, a epilepsia, a intoxicação alcoólica, entre outros. (N. do T.)
[4] Medicamento à base de arsênico com ação antissifilítica. (N. do T.)
[5] O termo “pulsão” [pulsion] refere-se aqui à perturbação do equilíbrio, frequente na doença de Parkinson — em que há tendência para cair para a frente (anteropulsão), para o lado (lateropulsão) ou para trás (retropulsão). (N. do T.)
[6] Denominação genérica das junções dos bordos de aberturas em forma de fenda, como nas pálpebras e nos lábios. (N. do T.)
[7] Queda ou localização anormalmente baixa de um órgão. (N. do T.)
[8] Associada à bradicinesia (lentidão dos movimentos), refere-se à bradifrenia que concerne muito particularmente à lentificação mental — da fluidez e do ritmo das associações, bem como do tempo de resposta a uma pergunta — característica dos epilépticos. (N. do T.)
[9] Corresponde a 76,5% da visão; 20/50 na famigerada Escala Optométrica de Snellen. (N. do T.)
[10] Os trabalhos do oftalmologista francês Paul Alfred Marie Bailliart [1877-1969] a respeito da circulação retiniana abriram alas, na França, para o estudo da hipertensão arterial e contribuíram com um elemento de observação que seria considerado de grande valia, tornando a prática de aferir a pressão da artéria central da retina um gesto de rotina em todo exame oftalmológico da época. Tal pressão se aferia com o auxílio daquilo que ficaria conhecido como “oftalmodinamômetro de Bailliart”; graduado em gramas, ele era aplicado sobre a esclerótica, nela exercendo rapidamente uma pressão progressiva. O surgimento da primeira pulsação arterial indica a pressão diastólica (considerada normal entre 30 e 35). Aumentando a compressão até o desaparecimento da pulsação arterial, o que provoca uma momentânea cegueira, e iniciando a descompressão, o retorno da primeira pulsação ocorre no momento em que a pressão sistólica é equilibrada. O número então obtido indica, por sua vez, a pressão sistólica da artéria (considerada normal quando 40). Em casos de hipertensão arterial, a pressão da artéria central da retina é elevada (entendida como ligeiramente elevada quando a pressão diastólica atinge cifras entre 50 e 60, como é o caso desta paciente de Lacan). Em razão de ligeiras variações, os números obtidos por essa técnica tinham apenas um valor relativo e só eram significativos se obtidos com o mesmo instrumento e pelo mesmo observador; não por menos, caiu em desuso. Imagens do dinamômetro de Bailliart podem ser encontradas em: <www.medicantica.com/EN/Ophtalmics/Dynamometer_Baillart.html>  (N. do T.)
[11] Atrofia de tecido muscular. (N. do T.)
[12] Trata-se de “Note sur un cas de contracture post-encéphalitique de la langue” (Revue Neurologique, 1922, vol. 1; pp. 1184-1185), no qual se relata um caso de contratura pós-encefalítica da língua, na qual esta fica ligeiramente para fora da boca por meio de uma contração espasmódica do músculo transverso. (N. do T.)
[13] Jean Jacques Lhermitte [1877-1959], aluno de Gustave Roussy [1874-1948], Fulgence Raymond [1844-1910] e Pierre Marie [1853-1940], era um neurologista francês. Foi chefe de clínica e laboratório na Salpêtrière, na Clínica de Doenças Nervosas, e chefe de laboratório de Pierre Marie até 1914. Entre 1915 e 1919, foi médico-chefe do Centro Neurológico de Bourges, sob a direção de Henri Claude [1869-1945]; depois, compôs o corpo médico do Lar Paul-Brousse. Em 1923, tornou-se professor de psiquiatria. Viria a ser membro da Academia de Medicina e comendador da Legião de Honra. Foi um dos diretores da revista L’Encéphale e membro do comitê diretivo de diversos periódicos, dentre eles a Revue Neurologique. (N. do T.)
[14] Nicholas Kyriaco [?-?]. (N. do T.)
[15] Trata-se de “Protraction de la langue par spasme dans l’encéphalite prolongée; amyotrophie localisée aux masticateurs”, publicado como adendo à sessão de dezembro de 1927 na Revue Neurologique, 1928, vol. 1; p. 282. (N. do T.)
[16] Trata-se de “Mouvements involontaires de la face et de la tête, à allure de spasmes rythmiques, survenant chez un malade atteint d’encéphalite léthargique” (Revue Neurologique, 1928, vol. 5; disponível em: <www.baillement.com/lettres/encephalite-crouzon.html >. (N. do T.)
[17] Louis Edouard Octave Crouzon [1874-1938] foi um neurologista francês. Doutor pela Universidade de Paris, Crouzon foi aluno de Joseph Babinski [1857-1932] e Pierre Marie [1853–1940]. Trabalhando no Hôtel-Dieu e na Salpêtrière, foi grandemente influenciado pelos trabalhos de Pierre Janet [1859-1947]. Foi presidente da Sociedade de Neurologia de Paris e secretário da Revue Neurologique. (N. do T.)
[18] Paul Ducas [1903-?]. (N. do T.)
[19] Trata-se, ao que tudo indica, de “Un curieux tic de la langue d’origine vraisemblablement post-encéphalitique”, publicado por Charles Dubois na Revue Neurologique (1929, vol. 1; pp. 40-45). Paul Charles Dubois [1848-1918], um neurologista suíço, seria considerado um dos pioneiros da psicoterapia. Por curiosidade, vale lembrar que a partir de indicação feita por Leonid Drosnes [1880-19?] — que então o recebia em tratamento na cidade de Odessa —, Serguêi Pankêiev (dito “Homem dos Lobos”) iria buscar tratamento com Dubois em Berna, a princípio; contudo, tendo encontrado Sigmund Freud [1856-1939] em Viena, tornou-se paciente deste, não chegando a se tratar com Dubois. (N. do T.)
[20] André Fribourg-Blanc [1888-1963] seria considerado o fundador da psiquiatria militar. Cf. N. Fribourg-Blanc (2010) Le fondateur de la psychiatrie militaire: le médecin général André Fribourg-Blanc (1888-1963). Paris: Christian. (N. do T.)
[21] Trata-se de “Spasme des abaisseurs de la mâchoire au cours d’un syndrome encéphalitique consécutif à une grippe” (Revue Neurologique, 1929, vol. 2; pp. 571-575). (N. do T.)

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Sobre o Autor

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Linguista e tradutor, exerce a psicanálise na cidade de São Paulo. Bacharel e doutor em linguística pelo IEL-Unicamp, realizou pós-doutoramento no Depto. de Ciência da Literatura da UFRJ. Atuou como professor-associado junto ao Depto. de Língua Romena e Linguística Geral da Universidade Alexandru Ioan Cuza (Iaşi, 2009) e foi tradutor residente do Instituto Cultural Romeno (Bucareste, 2013). Organiza a coletânea “A psicanálise e os lestes” (Ed. Annablume) e é um dos editores da Revista Lacuna (www.revistalacuna.com).