13.07.1933 | Um caso de perversão infantil por encefalite epidêmica precoce diagnosticada por uma síndrome motora leve

[ Un cas de perversion infantile par encéphalite épidémique précoce diagnostiquée par un syndrome moteur fruste ] 

Comunicação realizada por Georges Heuyer [1884-1977] e Jacques Lacan [1901-1981], junto à Sociedade Médico-Psicológica de Paris, em 13 de julho de 1933. Nela apresenta-se o caso clínico de uma criança de 14 anos que apresenta distúrbios do caráter e leves sintomas motores, que são respectivamente vinculados pelos autores à encefalite epidêmica e às perversões instintivas essenciais da criança. 

 

Annales Médico-Psychologiques, 1933, vol. 14, n. 2, pp. 221-223

 

L., 14 anos. – Sexo masculino. Nenhuma anomalia nos estágios do desenvolvimento somático e mental. Nos antecedentes familiares, nada além de um aborto espontâneo da mãe.

Atualmente, nível mental nitidamente superior nos testes de Terman.[1] QI = I. A criança, entretanto, não conseguiu concluir o primário por conta de um atraso escolar causado pelas sucessivas expulsões que puseram fim, com prazos sempre bastante curtos, a cada uma de suas várias experiências escolares. Após diversas tentativas infrutíferas em várias escolas municipais, tampouco conseguiu ser mantida em estabelecimentos de reeducação especializados. Uma tentativa recente de alocação como jovem aprendiz num ateliê de ourivesaria foi igualmente um fracasso.

As manifestações que impossibilitam sua adaptação surgiram entre os seis e sete anos de idade. Desde então não mudaram essencialmente de frequência nem de caráter.

Trata-se de impulsos perversos — malignos, no mais das vezes — frequentemente agressivos e perigosos. Eles ocorrem de forma muito brusca, na maioria das vezes de forma muito inesperada. Não há amnésia; a criança não manifesta nenhum remorso a seu respeito. É difícil atualmente, após diversos exames médicos, apreciar no interrogatório o grau de seu caráter coercitivo na consciência da criança.

Uma das mais chocantes dentre as primeiras manifestações foi que a criança se exibiu despida em plena sala de aula, aos sete anos de idade. Levaram-na então para se consultar na Clínica Psiquiátrica de Ste-Anne,[2] onde o exame neurológico e humoral (punção lombar praticada) foi declarado negativo.

Desde então pode-se notar uma série ininterrupta de iniciativas malignas, das quais as mais graves e as mais brutais são também as mais impulsivas e as menos complexas. Essas brutalidades exercem-se, no mais das vezes, com colegas de escola: pancadas, crueldades, travessuras perversas. Muito recentemente teve de deixar um internato profissional para crianças difíceis por ter ferido gravemente, com uma garfada, a mão de um dos seus vizinhos de refeitório. Voltando à casa dos pais, neles causa os maiores receios por conta das duas irmãs — uma mais velha, outra mais nova ­—, nas quais ele pratica as mesmas sevícias.

Cumpre notar igualmente um roubo impulsivo que pôs fim à recente tentativa de aprendizado — para a qual a criança se mostrou, aliás, pouco apta manualmente.

Tirante uma ligeira lentidão psíquica, o contato com a criança (222) mostra-se, no interrogatório, normal. Não se tem a impressão de tratar-se de um esquizoide, mas sim de um epileptoide. Apenas a sua reação, quando se evocam os seus malfeitos, permanece enigmática por sua atonia.

Os pais e os educadores, tendo esgotado todos os recursos, enviam a criança para se consultar conosco há três meses.

Constatamos uma fácies um pouco paralisada, um balanço normal dos membros superiores durante a marcha, sem sinal de hipertonia manifesta, sem o dito sinal da roda dentada,[3] sem distúrbios da refletividade tendinosa.

Mas, em contrapartida, uma síndrome motora, certamente leve, mas para cuja nitidez desejamos chamar a atenção: um tremor palpebral marcado no movimento sustentado do fechamento das pálpebras, um tremor fibrilar da língua, fibrilações concomitantes do orbicular[4] dos lábios. A escrita, por outro lado, mostra um tremor muito brando; certamente de uma grande tenuidade, mas que é o suficiente, à primeira vista, para classificá-la nas escritas ditas “neurológicas”.

Deve-se observar, ademais, que os testes de destreza manual cotejados, dos quais nos servimos em nosso serviço para a orientação profissional das crianças, deram, aplicados ao nosso sujeito, resultados de uma anomalia absolutamente ímpar. Esses testes consistem em rosquear porcas; colocar linhas em agulhas, em miçangas; ajustar cavilhas e compreende um trabalho de triagem e manipulação de objetos que permite julgar a motricidade da criança, e dela dissociar os fatores primários dos diversos níveis de organização a que está suscetível (atenção, ritmo, educabilidade, discernimento, organização). O trabalho é observado, cronometrado e classificado em quatro quartis escalonados pelo experimento. Em nossa criança, que não apresenta nenhum sinal de debilidade motora, todos os resultados, sem exceção, situam-se no limite inferior do último quartil. Esses resultados revelam-se à observação como sendo devidos, antes de mais nada, à extrema lentidão dos movimentos. Em seguida vêm erros frequentes de atenção; quedas frequentes de objetos; certa puerilidade do comportamento, que se marca numa má observação do trabalho a fazer. O núcleo propulsor dessa reação é, portanto, uma bradicinesia[5] que vem se somar aos sinais já notados.

Uma paresia da convergência ocular vem assinalar o alcance de toda essa síndrome e nos permite dar o verdadeiro valor a um antecedente infeccioso precoce, ocorrido aos dois anos de idade, e que se manifestou durante sete ou oito meses através de uma sonolência permanente da qual as solicitações externas tiravam o jovem sujeito apenas de uma forma totalmente momentânea. Períodos de sonolência foram notados diversas vezes desde então. Recentemente, também, a criança vinha dormindo no trabalho de aprendiz de ourives.

Na ausência de todo e qualquer sinal neurológico ou humoral mais preciso (B.-W.,[6] no sangue, negativo; P.-L., B.-W. negativo.[7] Alb.:[8] 0,20. (223) Açúcar: 0,70. Um elemento por mm3), essa síndrome motora leve e esses antecedentes nos permitem, conforme acreditamos, afirmar a patogenia de distúrbios do caráter, e ligá-los aos que se descrevem classicamente na neuraxite[9] epidêmica.

Esse caso nos pareceu interessante de comunicar por incitar a pesquisa dos sintomas mais leves da organicidade, cada vez que nos encontramos na presença dessa classe de distúrbios, definida de forma puramente residual e certamente heterogênea, chamados de perversões instintivas essenciais da criança.


[1] Lewis Madison Terman [1877- 1956], psicólogo norte-americano, desenvolveu sua atividade profissional na Faculdade de Educação da Universidade de Stanford, onde começou a se interessar pelo estudo de crianças consideradas superdotadas. Lá realizou diversos trabalhos sobre testes e escalas de inteligência, até que em 1916 publicou uma versão revista do teste Binet-Simon — que então passou a se chamar “Escala Stanford-Binet”. (N. do T.)
[2] O Centro Hospitalar Sainte-Anne foi edificado num local com vocação assistencial desde o século XIII. Em seguida à Casa de Saúde de Margarida da Provença, esposa de Luís IX; e então, ao Sanitat Saint-Marcel, no século XV (destinado aos doentes por contágio), Ana de Áustria ordenou a construção, por volta de 1650, de um hospital que receberia o nome de Sainte-Anne [Sant’Ana]. Pouco utilizado num primeiro momento, o local foi transformado numa espécie de fazenda onde iam trabalhar os alienados do Hospital de Bicêtre, que ficava relativamente próximo. Em 1863, no entanto, Napoleão III decide criar ali um hospital psiquiátrico, designado por ele próprio como “asilo clínico”, uma vez que se destinaria a ser um local de tratamento, de pesquisa e de ensino. O manicômio  é inaugurado no primeiro dia do ano de 1867, e seu primeiro paciente dará entrada em 1º de maio. Em 1922, havia sido criado ali, por Édouard Toulouse [1865-1947], um centro de profilaxia mental: o primeiro serviço livre, isto é, no qual os doentes não ficam internados. (N. do T.)
[3] Sintoma neurológico extrapiramidal devido à hipertonia muscular e a consequente limitação dos movimentos passivos dos segmentos dos membros. Ocorre uma resistência que cede aos poucos, como que em pequenos trancos, o que remete aos movimentos de uma roda dentada. (N. do T.)
[4] Músculo da boca composto por fibras que circundam o orifício bucal. É responsável pelo fechamento dos lábios e pela protrusão que possibilita o assovio. (N. do T.)
[5] Lentificação dos movimentos voluntários presente em várias condições médicas que afetam o sistema nervoso central. (N. do T.)
[6] Levando os nomes de Jules Bordet [1870-1961] — Nobel de fisiologia e medicina em 1919, por sua descoberta do bacilo da coqueluche — e August Paul von Wassermann [1866-1925] — um bacteriologista alemão —, a reação Bordet-Wasserman trata-se de uma reação de hemólise (dissolução dos glóbulos vermelhos) que foi desenvolvida por Wassermann em 1906, não sem reconhecer a importância de achados anteriores realizados por outros cientistas, dentre eles Jules Bordet. Consistia essencialmente em pôr frente a frente o antígeno, um complemento e o soro suspeito de conter o anticorpo sifilítico, permitindo detectar precocemente um anticorpo não específico contra a sífilis (a anticardiolipina), garantindo a intervenção medicamentosa precoce. Cf. E. Gonçalvez (1926) Sobre a sero-reacção de Bordet-Wasserman. Porto: Enciclopédia portuguesa. Disponível em:  <repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/17673/2/221_2_FMP_TD_I_01_C.pdf>. (N. do T.)
[7] A reação de Bordet-Wassermann pode ser realizada tanto no sangue quanto no líquido cefalorraquidiano. Assim, P.-L., embora tenha sido grafado como abreviatura de nome próprio, possivelmente indique ponction lombaire [punção lombar]. (N. do T.)
[8] Albumina. (N. do T.)
[9] A neuraxite (ou encefalite) consiste na inflamação da neuraxe, o eixo cerebrospinal do sistema nervoso central.  (N. do T.)

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Sobre o Autor

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Linguista e tradutor, exerce a psicanálise na cidade de São Paulo. Bacharel e doutor em linguística pelo IEL-Unicamp, realizou pós-doutoramento no Depto. de Ciência da Literatura da UFRJ. Atuou como professor-associado junto ao Depto. de Língua Romena e Linguística Geral da Universidade Alexandru Ioan Cuza (Iaşi, 2009) e foi tradutor residente do Instituto Cultural Romeno (Bucareste, 2013). Organiza a coletânea “A psicanálise e os lestes” (Ed. Annablume) e é um dos editores da Revista Lacuna (www.revistalacuna.com).